Um texto para o meu querido amigo João Nuno Almeida e Sousa.
Os pratos são bons quando estão sujos e vazios, comidos. De roda da mesa, copos variavelmente cheios, pratos pintalgados de restos, de molhos, talheres cruzados, duas ou três garrafas abertas meias cheias, três ou quatro temas de conversa cruzando de um canto ao outro a mesa, vozes, um pin-ball de ditos, um estômago atestado e tempo, tempo para passar. Á mesa nunca se envelhece, fiquemos sempre á mesa. Depois de um muito simpático jantar, ontem, em que o Mário lamentava a nossa concentração na política, apeteceu-me falar de comida, que é, como todos sabem, a única coisa na vida depois da poesia e do amor, que realmente interessa. Vai dai, iscas. A nobre glândula, símbolo de agouros e profecias, que dá pelo nome de fígado e que passa por ser uma iguaria de nobres. As iscas supremamente finas e pouquíssimo cozinhadas, tenras, suculentas, húmidas, que se desfazem na boca, quase sem dentes, entre a língua e o palato, são mais do que um prato, são um requinte. Nos tempos de pouco mais do que boémia e juventude costumava-mos, eu e o André, rumar ao Bairro Alto, buscando santuário no Estádio. Ora ao lado do estádio havia uma tasca, de porta e janela, de corredor com balcão, bancos e parede, onde se comiam das melhores iscas à Lisboa que já tive a sorte de provar na vida. Uma tasca que tinha um fogão encostado á janela que dava para a rua e uma eternamente fervilhante frigideira com iscas em seu molho aguando a boca de quem passava. Fígado cortado em bifes, com uma faca de talhante, uma mão pressionado ligeiramente a carne, a faca num angulo de 45 graus, num corte diagonal o mais finamente que seja humanamente possível, fritando em banha e vinho, nada mais do que alho, sal e pimenta, para dar o tempero e um polvilhado de salsa por cima no fim. Iscas, senhor, iscas. Também há quem as goste em pedacinhos muito pequenos, como quem rasga uma carta em fragmentos, mínimos. Há, cá na ilha um sítio que as faz assim, pequeníssimas, a Central do Petisco, em Santa Cruz, na Lagoa, depois de um banho de inverno e com imperiais, sozinho e feliz. Vem tudo isto a propósito de hoje ao almoço o meu pai me ter abandonado a um pratinho de iscas na Cervejaria do Veríssimo, porque ia para as Furnas e não podia almoçar comigo. Pois almocei eu, a sós, as minhas iscas, deliciosas por sinal, imaginando posts entre garfadas.
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