quinta-feira, fevereiro 5

Extracto de um conto

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O Gonçalo tinha ido a procura do Luís e do Francisco. Ao Francisco, foi encontrá-lo num avançado processo de engate, todo debruçado sobre uma pequena, falando de mansinho, numa voz profunda e baça. Como se alguém pudesse ouvir alguém no meio daquela algazarra. Mas este era o Francisco, e o seu charme ultrapassava barreiras sensoriais. Numa das mãos tinha um whisky velho e envelhecido, com o gelo quase desaparecido. Como sempre, o Francisco mantinha o seu dedo dentro do copo, a fazer companhia aquela pedra de gelo que se definhava. Dedo e pedra entrelaçavam-se dentro do espaço do copo, num ritual de dança que só uma pessoa que aprecia a companhia de um bom whisky poderia perceber. No momento em que, no meio daquela barafunda, ele num profundo silêncio, aproximou o seu corpo do daquela rapariga e, lentamente, deixou que os dois corpos roçassem até conseguir sentir o quente do corpo dela, uma mão agarrou-o por detrás. Ao princípio assustou-se, pensou que seria o pai, um irmão, talvez até um namorado. Com o corpo repleto de hormonas e atestado com álcool, virou-se preparado para participar num acto de violência, aliás, uma boa festa de passagem de ano não acabaria bem sem um tal acto final. Mas era o Gonçalo – ” Vamos, está na hora!” – disse-o com um sorriso de quem diz – ” (Querias-te agarrar sozinho, não?)” –. O Francisco olhou para o Gonçalo com um ar de uma perfeita mistura de indignação e aborrecimento como que a dizer – ” (Ó meu, estás-me a foder o esquema)” – e preparou-se para lhe tornar a virar as costas. O Gonçalo tornou a agarrá-lo e berrou-lhe ao ouvido – ”Vá lá! Já são quase uma da manhã e o João já chegou!” –. O grupo estava agora completo, e ele sabia que teria que deixar este perfeito banquete para mais tarde. Podia ser que, ainda antes da luz da manhã aparecer, volta-se a encontra-la e então estaria mais bêbado e o engate seria ainda melhor. Com o Gonçalo a puxá-lo pela gola do smoking, virou-se para a rapariga e, já todo esticado, levantou-lhe a mão, beijou-a, que nem um dramático Valentino, e ficou de mão estendida, enquanto o Gonçalo o puxava, até mergulharem naquele povo que dançava no meio do formigueiro. Num último olhar, turvado por mais de seis wiskys, decidiu que a mulher que quase possuíra era linda, perfeita, e era assim que dela se lembraria no dia seguinte.
De volta passaram pela zona dos quartos de banho. Era por lá que encontrariam o Luís. Certo e sabido. Num canto do salão, não muito longe das portas que davam entrada para os quartos de banho, numa zona aonde a música já não se houve tão alto e aonde a luz já é pouca, uma zona de limbo, tipo purgatório carnavalesco, nem festa, nem funeral, lá estava o nosso Luís, num estado pré-vomitário. Com um sorriso daqueles, abandonado na sua boca há algum tempo, sem se lembrar já porquê, lá estava ele. Encostado à parede branca, já desbotada no seu smoking e com a bochecha espalmada de encontra aquela parede, aproveitando o seu frio que nem um dedo e uma pedra de gelo num copo de bom whisky. O Gonçalo e o Francisco saíram de dentro da tribo dançante, não se deram ao trabalho de lhe explicar nada, agarraram-no cada um pelo seu braço e como que sofrendo a pressão de uma força centrifuga voltaram a mergulhar naquela massa de gente e dirigiram-se para os seu espaço na selva.
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