quarta-feira, junho 10

o estado da região

Sejamos sinceros, isto já estava mau antes do vírus, ficou foi ainda pior. E, a grande probabilidade é que, passada a pandemia vírica, fique pior ainda, por força da pandemia económica. Não interessa, muito, por isso, preguiçar indolentemente na culpabilização da coisa. Se o bicho é uma invenção chinesa ou uma criação americana; se o confinamento salva ou se os suecos ganharam imunidade de manada; se as vacinas virão com nano chip integrado ou se vamos voltar todos a viver no “novo paleolítico”. Tal não significa, porém, que não se deva proceder ao devido escrutínio político das decisões tomadas e, à consequente responsabilização e aprendizagem. Mais do que uma vacina, talvez seja esse aprendizado o que nos possa salvar da próxima vaga deste bicho ou da, mais que certa, vaga de um novo bicho. Mais do que identificar o código postal do laboratório onde o corona foi manipulado, importa sim entender que a circulação e disseminação deste tipo de vírus se deve à maciça destruição de habitats, levada a cabo nas últimas décadas, pelos Seres Humanos. Importa, sim, interiorizar que a opção pelo confinamento não foi uma decisão ponderada, tomada com base em conhecimentos tanto médicos como sociológicos, económicos e políticos. O confinamento foi um desespero de causa, cooptado por virologistas e governantes, em pânico com a ideia de verem os eleitores subitamente transformados em urnas funerárias, multiplicando-se como cogumelos, em quantidades industriais. E que, esse confinamento, foi decidido sem que os governos tivessem qualquer esboço de plano sobre como limitar, combater e/ou contrariar os óbvios e catastróficos efeitos do mesmo na frágil tessitura social do nosso contemporâneo neo-liberal-capitalismo-global.
Aqui chegados, o que fazer? Pois bem, estes são os factos: o vírus existe, tal como existirão outros, até potencialmente mais perigosos para a saúde humana. O confinamento não é uma cura, nem sequer uma profilaxia. De que serve “salvar” batimentos cardíacos se com isso se destroem corações? A vida é um complexo entrelaçado de condimentos, não é apenas e só um mero registo de funções fisiológicas. Esse é um tipo de pensamento útil apenas para bastonários e nunca para altos dignitários. A política, aliás, serve  para escutar os técnicos, mas, acima de tudo e exactamente, para os contrariar, quando a técnica se mostra incapaz de abranger a vasta complexidade do devir humano. O mundo, o mundo todo, está hoje confrontado com a maior crise dos últimos cem ou duzentos anos. Para sairmos disto, temos de recorrer ao que temos, ao que sempre tivemos, o engenho e a arte, a criatividade e a capacidade do ser humano para, solidariamente, suplantar a adversidade, a tirania e o caos.
Para esta crise não há soluções isoladas, ou isolacionistas. Daqui só sairemos de mãos dadas. Inexplicavelmente, ou não, o caminho que a Europa e, por arrasto, o País e a Região, parecem estar a seguir, por preconceito ideológico e por pressão dos lóbis do capital, é o do endividamento. A única resposta visível até ao momento é a do pedir dinheiro emprestado e, depois, logo se vê. É como se os directórios europeus desejassem que, em cima da já de si brutal crise, sobreviesse uma astronómica e gargantuana banca rota, que explodisse em cima de nós todos como um gigantesco e psicadélico cogumelo atómico. Quando, pelo menos a mim, parece-me perfeitamente cristalino que a única forma de ultrapassar este momento seria (será!) imprimir euros e distribuí-los, equitativamente, por países e por pessoas, por via de um Rendimento Básico Incondicional, pelo tempo estrito da duração desta crise, seja ela em desenho de V, de U, de vários W ou de um doloroso e infindável L…
Mas, passemos a questões mais concretas – Açores e Turismo. O Turismo, em toda a sua cadeia de valor, desde o pequeno agente, à grande companhia aérea, passando pelo alojamento, a animação e a restauração, o Turismo, dizia eu, foi a primeira vítima global do Covid-19. Uma Indústria alicerçada na Hospitalidade não pode sobreviver num mundo de portas fechadas e de pessoas isoladas. No entanto, é óbvio que não podem ser assacadas responsabilidades ao Governo Regional pela debacle do sector. Mas, nas respostas à situação, sim, podem. E, se até poderemos considerar que muitas dessas respostas estão dependentes de soluções partilhadas com a República e entre Estados, há, claramente, considerações que são estritamente locais. Desde logo, a manutenção e eventual requalificação da oferta. O foco da atenção actual do Governo Regional, e dos empresários, diga-se, deveria estar totalmente empenhado na defesa e salvaguarda da oferta, permitindo que, quando e como, a retoma se der, se se der, o Destino Açores ainda exista como tal. Com alojamento, animação e serviços de qualidade. Isto sim é Sustentabilidade.
O foco no emprego, não passa de uma arma eleiçoeira e uma forma de, em género de tratos de polé, condenar as empresas ao inferno da dívida. Manter despesa, quando não há rendimento significa défice, que leva a encargos, que levam a, acertaram, falências. A fórmula pífia do layoff esquece todos os outros custos que as empresas continuam, regular e impreterivelmente, a ter. Quartos para arejar, carros para manter, luz e água, taxas, impostos, como o inefável IMI, dividas à banca, mas, vá-la que as moratórias são das poucas coisas que até tem corrido bem, e todo um imenso rol de pequenos custos que, ao final de cada mês, são o prego no caixão de cada infeliz empreendedor. O ponto a que esta situação nos vai levar é a um desvario indiscriminado de falências, em que apenas se vão salvar, os grandes, os sacrificados ou os aldrabões e sem que a Região tenha mexido um dedo mindinho para proteger a qualidade e a diferenciação da oferta e salvaguardar a criação de valor. O que se exigia, o que devia estar a ser veementemente exigido pelos empresários do sector, era que o Governo tivesse já instituído um Gabinete de Crise, com a missão de, directamente no terreno, ilha a ilha, empresa a empresa, estudar e implementar medidas de suporte básico de vida para o sector. Rendimento zero = despesas idem. Simples! No entretanto, avaliar cuidadosamente a oferta instalada, podando os excessos, as redundâncias e as ervas daninhas para que, aquilo que realmente tenha potencial de crescimento possa, na verdade, prosperar quando se der a retoma, que todos esperamos e que, inevitavelmente, irá acontecer.
Outro dos logros em que o Governo e os empresários estão a laborar é a questão dos mercados. Se a ideia do mercado nacional era, já de si, improvável, ao que acresce o estar a ser estupidamente mal trabalhada. A ideia, então, do mercado regional é de tal maneira estapafúrdia que causa dor e repulsa a insistência com que os responsáveis regionais se utilizam dela. A números de 2019, a Região tinha cerca de 25000 camas e registou perto de 1 milhão de hóspedes para, numa estada média de 3 noites, pouco mais de 3 milhões de dormidas. E isto, atenção, para uma taxa de ocupação global a rondar os 34% (!!!). Ora se tivermos em conta que a região tem uma população de 245 mil almas e que dessas, apenas, 123 mil são população activa, ficamos com uma ideia de como o “mercado regional” não passa de um verdadeiro gambuzino, por mais campanhas “seguramente açorianas” que se façam. E, já nem vou sequer mencionar o facto de a Região Autónoma dos Açores ter os piores índices de distribuição de riqueza, porque isso reduzia o mercado regional à capacidade de um ou dois aviões da SATA.
No que toca ao mercado nacional, esse morreu em dois momentos. Primeiro, na descontinuidade territorial e não, não estou a falar de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, estou a falar mesmo das perto de 900 milhas, os 1.500 quilómetros, as duas horas de avião, que separam Lisboa de Ponta Delgada. E, aqui a ênfase deve ser posta no avião. Este ano só os muito ricos e despreocupados, que como sabemos, em Portugal, são uma minoria, é que vão andar de avião, os outros vão pegar no carrinho e vão de férias à terrinha. O segundo, foi o timing. É bom lembrar que até praticamente ao início de Junho a mensagem que os Açores andaram a passar foi a de que não queriam cá ninguém. Que a peste viajava alojada no buço dos turistas e dos tugas do continente e que não queríamos que viessem para cá infectar as nossas pombinhas do Espírito Santo. Tanto que, até hoje, António Costa e Vasco Cordeiro não se falam e o continental rumina com os seus botões que aqueles açorianos são todos birutas. Ora, o que isso fez, foi com que o pai de família, subchefe de repartição, pegasse na Maria e nos dois putos e marcasse as feriazinhas de verão na praia fluvial de Pedrógão, para ajudar os locais, que perderam tudo nos fogos, coitados. Açores? Não, isso é para o Marcelo e para a tia Maria João.
Chegados aqui, com que é que ficamos? Uma mão cheia de nada. Um Presidente do Governo, em campanha eleitoral, correndo de porta em porta, vestido de negro e de máscara, como um médico da peste, receitando Éter aos moribundos. Uma oposição presa nos clichés do politicamente correcto e refém dos obscenamente altos números da abstenção. Uma associação de empresários de turismo que está morta há muitos anos, mas que teima, qual Rasputin da contratação pública, em não querer ver declarado o óbito. E, por fim e o pior de tudo, uma população em que praticamente dois terços depende, directa ou indirectamente, do Sérgio Ávila para meter comida na mesa ao fim do mês.
                Como dizia no início, isto já estava mau, o Covid, que nos meteu a nós de máscara, só veio desmascarar o quão mau isto estava…

sábado, junho 6

diário da descontaminação

E eis que ao octogésimo segundo dia o bicho deixou de constar da folha estatística diária. Naturalmente que ele ainda anda por aí, silencioso e invisível, assintomático, como se usa agora dizer. Mas, como não dá positivo nos testes a região soergue-se em júbilo, como se o próprio Jesus tivesse descido à terra. Nas redes sociais, nas capas dos jornais, nas infelizes composições laudatórias com que os partidos tentam tirar partido da insignificância do número e nessa idiótica viagem que o hiperativo e sempre sorridente presidente Marcelo decidiu fazer, de relâmpago, à décima ilha, para compor, ainda mais, o ramalhete mediático da sua permanente campanha eleitoral. Todos se extasiam em orgulho insular e autonómico. Depois do “orgulhosamente sós” e do “queremos isto tudo fechado” agora temos o “somos os primeiros” da corrida ao casos zero. Perdoem-me que não acompanhe o coro histriónico de contentamento, mas para mim é-me difícil acompanhar o jubilo. Daqui, do fundo do poço, é difícil ver o regozijo. Perante o imparável e crescente avolumar da pobreza, das falências, do desemprego, do dantesco inferno económico e social que estamos, e que vamos por muitos anos, viver é difícil considerar que, 160 casos depois, possa haver grandes alegrias no simples facto de haver uma folha limpa no relatório diário do laboratório de análises. E, esse é talvez o maior drama desta crise, a miopia. Desde o seu início que as Autoridades olharam para o Covid-19 como um problema exclusivamente clínico, ignorando os multifacetados impactos da pandemia, e das suas acções enquanto decisores políticos, no conjunto da sociedade e da economia. O vírus, mais do que um problema sanitário, era um problema comunitário, como muitos se irão agora aperceber, da forma mais dolorosa possível, quando a grande curva da depressão económica se agigantar sobre as nossas vidas, sem remédio que a achate. Mas, aos políticos, que no final do dia são sempre os principais responsáveis, por mais que digam que o inimigo veio de fora, tentando esconder o simples facto de que o vírus não toma decisões, aos políticos, dizia eu, interessa apenas o espírito do momento, a espuma do dia, o que importa agora é cavalgar a folha limpa da descontaminação. Só assim se explica que os mesmos que há pouco mais de quinze dias zurziam os tribunais porque haviam aberto a porta do nosso santuário insular à peste estrangeira, sejam agora os maiores promotores da descovidização à força de prémios fajutos de associações questionáveis. No meu tempo, estes pueris galardões custavam dois mil e quinhentos euros e, se na altura já era duvidoso o racional do dispêndio de euros, agora então, que não existem mercados, tal não passa da mais básica e condenável campanha política interna. A dura realidade é que, como recentemente se viu numa sondagem, mais de 60% dos portugueses não vão fazer férias fora de casa e, para contrariar isto, não há nem teste nem best que nos valha… 


quarta-feira, junho 3

Processo de Covidização em curso...

Para muita gente, por esse mundo fora, esta grande crise do Covid tem potenciado o ensejo de um radical cambio civilizacional. Há como que um desejo latente e profundo de que a humanidade se possa regenerar, possamos salvar o planeta, criar prosperidade para todos e inventar uma nova utopia social de alegria, paz e amor. De repente, no abrir de portas do desconfinamento surgimos todos na rua com o discurso da Miss Universo. Cerca de 200 anos depois do alvor da Revolução Industrial acordamos todos a citar Engels e Marx e a pugnar por um mundo onde o capital não seja a força maior da opressão do homem. E assim vamos, em busca das novas Itakas do bem-estar e da redistribuição equitativa da riqueza. Remediados de todo o mundo uni-vos, contra os Gates, Bezos e Zuckerbergs da vida marchar, marchar! O problema é que nem o mundo se transforma com tanta facilidade, nem tudo o que conquistamos com o desarolhar do capitalismo ocidental é, necessariamente, mau. Atente-se, por exemplo, o caso do Turismo. O Turismo foi, indiscutivelmente, uma das grandes conquistas civilizacionais do mundo moderno. Se as Descobertas deram novos mundos ao Mundo, o Turismo deu Mundo às pessoas e deu pessoas a esses muitos mundos que compõem o nosso Mundo. Podemos argumentar, e serei sempre o primeiro a defender esse argumento, que muito de pernicioso adveio das actividades ligadas ao Turismo: a massificação, a poluição, a gentrificação, a disneyficação, entre muitos outros palavrões sinónimos da desregulamentação e alienação global provocada pela voragem desenfreada do Turismo selvagem, feito de turistas, passe a redundância, em vez de viajantes. Mas, como disse Santo Agostinho, “o mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas a primeira página.” E nada promoveu mais a verdadeira democratização desse conhecimento do que a Indústria do Turismo. Desde as primeiras linhas de caminho de ferro de 1800 aos luxuosos long range da Emirates a circulação, mais ou menos acessível, de pessoas pelo mundo todo foi um dos mais importantes fenómenos culturais da modernidade. A democratização das viagens trouxe conhecimento, abriu horizontes e, fundamentalmente, criou uma globalização de empatias e de afectos humanos, para contrabalançar a essa outra globalização, a globalização fria e repugnante do vil metal. Só que, de um dia para o outro, o Covid-19 destruiu tudo isso. Aeroportos fechados, milhares de aviões no chão, companhias aéreas falidas ou em vias disso, ao que acresce a estúpida tendência de querer transformar hotéis em enfermarias e restaurantes em cantinas de hospital, com seis desinfecções por dia, ditaram a morte do Turismo tal como o conhecíamos. Neste momento, há duas forças em conflito na batalha pela “nova normalidade” do Turismo: de um lado os que procuram, a todo o custo, retomar, reabrir, repor, custe o que custar, sem demoras e sem, principalmente, ponderação e bom senso. O exemplo mais paradigmático desta corrente é a aviação, que contra qualquer grama de sensatez e, até, ao arrepio da espectativa dos próprios passageiros, procura, à força, encher novamente aviões. Do outro lado estão os novos nacionalistas, defensores do fecho total das fronteiras, e os puristas da new-age, que advogam um regresso ao paleolítico humano, feito de vestes de cânhamo e psicadélicas viagens espirituais pelo Éter da nova eco-globalização. Resta saber se, no meio deste yin-yang conceptual, o simples gesto e o prazer íntimo de viajar, de absorver o mundo com os nossos próprios corpos e emoções, se conseguirá salvar. Resta saber se o mundo que aí vem será feito de e com pessoas, ou, apenas, de autómatos mascarados, desinfetados e devidamente posicionados nos 2 metros de distância. Como diz a outra senhora – festejem os golos, mas baixinho…


terça-feira, junho 2

#blackoutuesday



Tudo começou com uma nota. Uma nota supostamente falsa usada por George Floyd para pagar um maço de cigarros. Uma mera nota de vinte dólares americanos que gerou desconfiança num funcionário de um supermercado em Minneapolis e valeu um telefonema para o 911. Cumprimento das regras, excesso de zelo, policiamento de costumes (Floyd estava alcoolizado) ou comportamento racista, que importa agora? A queixa nunca deveria ter sido feita, desculpou-se Mahmoud “Mike” Abumayyaleh, dono da Cup Foods, quando o caos rebentou. Too late. Não há como não pensar na enorme disparidade entre causa e consequência. Não há como não pensar na estranheza desta história e na longa fita que tem por desenrolar. Sem desculpas ou atenuantes para Derek Chauvin, expulso da polícia, detido para julgamento, acusado (e bem) de homicídio, podemos questionar coincidências e desenvolver teorias. Padecerá o infame polícia de chauvinismo, honrando assim o seu apelido? Se assim for, como enquadrar o casamento com Kellie May, nascida no Laos e refugiada na América, que sobre ele disse “Under all that uniform, he’s just a softie,” quando ganhou o título de Mrs. Minnesota em 2018? Existirão antecedentes de conflito laboral no trabalho extra partilhado por Chauvin e Floyd durante quase 20 anos no El Nuevo Rodeo Club, um espaço de animação nocturna especializado em Música Latina? Parece um argumento de Hollywood, mas é o background bizarro destas personagens no olho do furacão. Seja qual for o enredo, nada justifica o assassinato de George Floyd. Nada justifica também a sua reprodução ao vivo e a cores nas televisões de todo o mundo e nas redes sociais. A morte em directo tornou-se uma banalidade. Um incentivo à indiferença ou ao ódio, mais do que à consciência social. Anestesiados e deprimidos por tanta (des)informação, manipulados até à exaustão, perdemos o foco do essencial: «all men are created equal». Foi preciso um hashtag na net para nos lembrarmos disso.

segunda-feira, junho 1

Uma educação musical

Para o ZB


A minha primeira influência musical foi o meu pai. O meu pai gostava, emocionalmente, de música. Era um romântico, que gostava de música romântica. O meu pai cantava, cantava o Fado e, diz quem o ouviu cantar, que em jovem cantava bem. Eu não me lembro de o ouvir cantar, mas, registo o macabro sarcasmo do destino de que o primeiro órgão do corpo que o cancro lhe levou foi uma corda vocal. O meu pai não era melómano, lá por casa não havia discos, lembro-me de umas esparsas cassetes com coisas aleatórias: Maria Creuza cantando Vinícius; Art Tatum e Errol Garner; Julio Iglesias. Mas, o meu pai gostava de música. Disfrutava dela. Jazz, MPB, Flamenco ou “espanholadas” como sorridentemente dizia e que ouvia sempre batendo palmas a ritmo com pose de cantor cigano. Fado, muito fado. Amália, Marceneiro, Carlos do Carmo, Rodrigo, de quem se dizia que era vagamente piroso, mas que cantava pela vida e o grande, enorme, António dos Santos e o seu “minha alma de amor sedenta” que ainda hoje ouço com arrepio. Mais tarde, houve uma altura em que trocávamos cds um com o outro, numa espécie de diálogo sem palavras, como se aquela fosse a nossa maneira de trocar afectos. No fugaz período da pré-adolescência a música que eu ouvia era a da minha irmã e a das amigas e amigos da minha irmã. As cassetes com os sucessos do Bananas e do Plateau. O “come on, Eileen” dos Dexys Midnight Runers ou o “I want you to want me”, dos Cheap Trick. Por essa altura havia, também, a música dos filmes: a guitarra do Ry Cooder no Paris, Texas, o “electric dreams” do Phil Oackley e do Giorgio Moroder, a banda sonora do Blade Runner do Vangelis. Ali pelos 11/12 anos a minha influência musical era o Rodrigo Carmona e a sua predilecção por tudo o que fosse rock de lycra e cabelo comprido. Poison (“Unskinny Bop”, quem nunca…), David Lee Roth, malhas de guitarra e sintetizador. Bala! Depois, veio o liceu e a adolescência e as influências eram tantas como as angústias. Em Lisboa, mais concretamente em Benfica, no eixo Sete Rios, onde ficava o D. Pedro V, e o Fonte Nova, onde se passavam os serões no pátio ao lado do Califa, quando os pais deixavam a malta sair até depois das nove, os azimutes musicais eram tão dispares como os rótulos: The Cure e Stranglers para os góticos; Sepultura para os metaleiros; INXS para os betos; Guns n’ Roses para os surfistas; e Smiths para os alternativos, e eu era, em doses mais ou menos iguais, um pouco de cada um. Por essa altura, passavam na RTP, dois programas fundamentais para quem gostasse de ouvir e, principalmente, descobrir música. O Outras Músicas, programa do Jazzé Duarte, que passava na RTP 2 aos sábados de manhã, e o Popoff, com a presença inconfundível da Sofia Morais. Quer um quer outro foram instrumentais na minha descoberta e afirmação de um gosto musical ecléctico, despreconceituoso e, acima de tudo, intransigentemente livre. O Outras Músicas até me levou a ir assistir ao vivo, no grande auditório da Gulbenkian, a um concerto do Stockhausen. Ainda por Lisboa havia, claro, o Pedro Adão. O Pedro era detentor de duas coisas fundamentais – um invejável bom gosto natural e discos. O Pedro tinha os discos, comprava discos, e sabia tudo o que era novidade. Para alguém como eu, que parasitava gostos musicais diversos, a maturidade musical do Pedro era uma espécie de El Dorado existencial. Do género, quando for grande quero ser como o Pedro. A panóplia de sabedoria audiófila do Pedro ia desde ter uma t-shirt do Meat is Murder (ou seria do Queen is Dead?) dos Smiths, a discografia completa da evolução Joy Divison / New Order, até saber de cor a letra completa da “dança nua” dos Essa Entente. Num outro mundo paralelo, havia a adolescência açoriana. A minha dupla nacionalidade, açoriano em Lisboa e português em São Miguel, levou-me, desde pequeno, a passar metade do ano na ilha. Juntando Natal, Páscoa e os 3 meses de verão, o tempo passado na ilha era quase tanto como no continente, sendo que do ponto de vista musical foi, indiscutivelmente, muito maior. Perceba-se que ter 15 anos em 1989 significava ser contemporâneo de “3 feet High and Rising” dos De La Soul, “Doolitle” dos Pixies, “Bleach” dos Nirvana e o homónimo primeiro álbum dos The Stone Roses. Se, no mesmo ano, em Lisboa, se ouvia o “funky cold medina” do Tone Loc ou o “pump up the jam” dos Tchenotronic, quando não se cantarolava o “like a prayer” da Madonna ou o “if I could turn back time” da sempre jovial Cher. Nos Açores, o ambiente musical era pautado por diametralmente diferentes matizes, que iam desde a extasiante Madchester, aos experimentalismos de Zoviet France e Skinny Puppy, passando pelo hedonismo dos B-52’s e o obscurantismo satânico de Diamanda Galas. E, a malta absorvia tudo com igual sede. Toda esta banda sonora é indissociável, mais se calhar do que das pessoas, de dois carros: o Volvo 340GL(?) do pai do Bernardo Rodrigues e a Renault 4L dos “minhocas”. Esses dois carros, as repetidas viagens entre surfadas, entre festas nas Furnas ou nas Sete Cidades, entre a Cascata e a Caldeira Velha, entre a “cidade” e as nossas casas ou, imagine-se, entre o Populos e o Cheers, às vezes em recuo, foram a discoteca perfeita para a melhor formação musical de toda uma adolescência. Porra, a aparelhagem na 4L valia mais do que o próprio carro! Mas, sim, na verdade, o mais importante nisto tudo, mais do que as ondas que surfamos, os temas que escutamos ou as miúdas que amamos, foram as amizades que fizemos, entre os versos de Rimbaud, ou os lamentos de Lautreamont, entre as batidas do Jazzmatazz do Guru ou os riffs da guitarra do Noel Gallagher. E, ainda havia a Universidade e as cassetes para as namoradas e a X-FM e os discos comprados na Contraverso e depois na Amazon e na FNAC ou as cópias de Cd’s feitas no duplo cd recorder da Panasonic e as festas e as malas de discos e, e, e, …

Tudo isto a propósito do desafio facebookiano do Diogo Cymbron para escolher 10 discos que tiveram influência no meu gosto musical. Do que fica exposto, penso que fica também claro que tal escolha seria impossível, mas e mesmo apesar de ter a maioria da minha colecção de discos encaixotada, olho, de relance, os poucos que estão espalhados aqui por casa e escolho, apaixonadamente, 10:
Keith Jarret – The Koln Concert
Astor Piazzolla . Kronos Quartet – Five Tango Sensations
Oasis – Definitely Maybe
The Stone Roses – The Stone Roses
The Divine Comedy – Promenade
Kruder Dorfmeister – The K&D Sessions
Maxence Cyrin – Novo Piano