E eis que ao
octogésimo segundo dia o bicho deixou de constar da folha estatística diária. Naturalmente
que ele ainda anda por aí, silencioso e invisível, assintomático, como se usa
agora dizer. Mas, como não dá positivo nos testes a região soergue-se em júbilo,
como se o próprio Jesus tivesse descido à terra. Nas redes sociais, nas capas
dos jornais, nas infelizes composições laudatórias com que os partidos tentam
tirar partido da insignificância do número e nessa idiótica viagem que o hiperativo
e sempre sorridente presidente Marcelo decidiu fazer, de relâmpago, à décima
ilha, para compor, ainda mais, o ramalhete mediático da sua permanente campanha
eleitoral. Todos se extasiam em orgulho insular e autonómico. Depois do “orgulhosamente
sós” e do “queremos isto tudo fechado” agora temos o “somos os primeiros” da
corrida ao casos zero. Perdoem-me que não acompanhe o coro histriónico de
contentamento, mas para mim é-me difícil acompanhar o jubilo. Daqui, do fundo
do poço, é difícil ver o regozijo. Perante o imparável e crescente avolumar da
pobreza, das falências, do desemprego, do dantesco inferno económico e social
que estamos, e que vamos por muitos anos, viver é difícil considerar que, 160
casos depois, possa haver grandes alegrias no simples facto de haver uma folha
limpa no relatório diário do laboratório de análises. E, esse é talvez o maior drama
desta crise, a miopia. Desde o seu início que as Autoridades olharam para o
Covid-19 como um problema exclusivamente clínico, ignorando os multifacetados impactos
da pandemia, e das suas acções enquanto decisores políticos, no conjunto da
sociedade e da economia. O vírus, mais do que um problema sanitário, era um
problema comunitário, como muitos se irão agora aperceber, da forma mais
dolorosa possível, quando a grande curva da depressão económica se agigantar sobre
as nossas vidas, sem remédio que a achate. Mas, aos políticos, que no final do
dia são sempre os principais responsáveis, por mais que digam que o inimigo
veio de fora, tentando esconder o simples facto de que o vírus não toma
decisões, aos políticos, dizia eu, interessa apenas o espírito do momento, a
espuma do dia, o que importa agora é cavalgar a folha limpa da descontaminação.
Só assim se explica que os mesmos que há pouco mais de quinze dias zurziam os
tribunais porque haviam aberto a porta do nosso santuário insular à peste
estrangeira, sejam agora os maiores promotores da descovidização à força de
prémios fajutos de associações questionáveis. No meu tempo, estes pueris galardões
custavam dois mil e quinhentos euros e, se na altura já era duvidoso o racional
do dispêndio de euros, agora então, que não existem mercados, tal não passa da
mais básica e condenável campanha política interna. A dura realidade é que,
como recentemente se viu numa sondagem, mais de 60% dos portugueses não vão
fazer férias fora de casa e, para contrariar isto, não há nem teste nem best
que nos valha…
sábado, junho 6
diário da descontaminação
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