segunda-feira, janeiro 11

O colapso final

a destruição de Sodoma e Gomorra, John Martin, 1852


Chegados aqui, ao limiar de um novo confinamento geral e ficcional, só os privilegiados vão efectivamente confinar, já pouco mais há a dizer. O espírito pende cansado sobre si próprio e o pensamento é de exaustão e enfado. É como se toda a estupefação e indignação que carregamos, por quase um ano, fizesse desmoronar o corpo sobre o seu próprio peso.

Já não me aflige a derrota da racionalidade. O bom-senso foi a primeira vítima da Covid. Os governos, todos eles, por esse mundo fora, habituados a tomar decisões apenas para os ciclos eleitorais, viciados em mentir, para mentir a seguir, para esconder a mentira anterior, apressam-se a tomar medidas avulsas, incoerentes, genéricas e generalistas, presos que estão no populista e demagógico enredo das sondagens e dos sound bytes das notícias. Não foi o vírus que tomou conta das nossas vidas e as destruiu, foi o medo do vírus, o medo das imagens dos corredores dos hospitais cheios, como se em cada inverno elas não se repetissem, foi o medo das mortes, como se todos os anos não morressem dezenas de idosos abandonados ao frio e à solidão, foi o medo da nossa própria fragilidade e hipocrisia que nos dominou.

Já não me assusta os devastadores impactos económicos e sociais da miopia dos políticos que, a coberto dos epidemiologistas que renegaram todos os mais básicos princípios da ciência, a dúvida, o questionamento permanente, a aversão ao dogma e à fé, a ciência tornou-se numa nova fé, uma nova inquisição, e decidem confinamentos generalizados sem por um segundo pensarem nas pessoas. Assusta-me como os próprios cientistas não foram capazes de compreender que as suas soluções eram abjectas. como não foram capazes de arrepiar caminho, como por estes dias sugeriu um político, e não ir por aí, porque os custos da solução eram mil vezes piores do que o problema. Aflige-me a ditadura da estatística, dos casos por mil habitantes, das mortes por milhão. o ludibriar permanente e manipulador das estatísticas, dos gráficos, das linhas, as ondas, as vagas imaginárias. A vida como abstração matemática, a sacrossanta vida, como se cada vida não fosse, afinal, uma pessoa, uma forma de amor, como se cada vida que juram querer salvar não fosse, afinal, uma vida que precisa de ser vivida. Como se a própria vida, enfim, não fosse por natureza eminentemente periclitante e efémera. Viver mata! E, o que estamos a fazer é condenar a uma morte solitária e fria aqueles que devíamos estar a aquecer no nosso abraço fraterno e a acompanhar nesta sua última caminhada.

Assusta-me a ideia de que a solução para os problemas humanos é a perda de humanidade. A forma como se abdica da essência do ser humano por um conceito clínico de vida, feita apenas de circulação vascular e cerebral, desprovida de sociabilização e afecto, assustam-me estas visões higienizadas do mundo, em que as pessoas são como ratos de laboratório e as terríveis e profundas desigualdades de um mundo onde uns poucos se podem confinar nas suas casas aquecidas e uns muitos se veem forçados ao trabalho ou à pobreza. Assusta-me como deitamos tão fácil  e rapidamente no lixo as nossas liberdades, sem sequer pestanejar nem que por um breve momento de dúvida pelo que de básico e essencial estamos a abdicar e destruir.

Assusta-me, isso sim, as crianças. E, a terrível punição que lhes estamos a impor. O fecho das escolas é uma pena capital no seu futuro, no seu crescimento, nas aprendizagens, nos afectos, é um terramoto brutal e destruidor, enfim, nas suas memórias. E, só Deus e o Futuro saberão o que tudo isto significa no amanhã  destas crianças a quem agora roubamos a infância com o medo não da morte, ou do colapso do Sistema Nacional de Saúde, mas com o medo da próxima sondagem ou do resultado da próxima noite eleitoral. Já o disse e volto a dizer, estamos, vai para um ano, a testar soluções genéricas e manifesta e comprovadamente erradas para um problema que felizmente e sazonalmente aflige pouco mais de 2% da sociedade e, com isso, ao mesmo tempo estamos a destruir, sem dó nem piedade, sem um pingo de fraternidade e solidariedade, os restantes 98%. O problema não é o vírus, nunca foi, o problema fomos sempre nós!