quarta-feira, maio 27

Tudo mudou



Olho pela janela, na direcção do mar, o céu azul, o sol pálido da luz da manhã, quase que não se vêem as cinzas do mundo que acabou de desabar. Quase se diria que nada mudou. A esta hora estaríamos a terminar o serviço dos pequenos almoços, os hóspedes fariam perguntas sobre os trilhos, as distâncias, um miradouro, um restaurante, o melhor peixe. Terminaríamos o serviço dos quartos, a ronda pelos emails, os pedidos de reservas, que agora não são mais do que repetidos alertas vermelhos de cancelamentos, cancelamentos, cancelamentos. Perguntas que se transformaram em pedidos de informação, se há voos, se estamos abertos, explicações sobre as restrições, as quarentenas, tentativas frustradas de traduzir para inglês portarias que nem em português são inteligíveis. Orientações descabidas de Autoridades que não sabem, ou não querem perceber, que o Turismo é a arte de bem receber e não a da Xenofobia. Que um hotel não é uma enfermaria. Que para fazer um almoço é preciso vender cinco. Que não há açorianos suficientes para encher os hotéis de São Miguel e que os continentais, que eles enxotam são, sempre foram, o nosso principal mercado emissor. E, quanto mais tarde se aperceberem disso, já todos foram para o Algarve, para o Gêres ou para o sudoeste Alentejano. Mas, tal como os “apoios” do Governo, também o sol é enganador e o mar sem ondas esconde a verdadeira tempestade. O Mundo todo à nossa volta mudou, mesmo que no covil do desespero alguns queiram, à força, regressar a essa errónea “nova normalidade”.

segunda-feira, maio 25

Manual de Simpatia


Voltemos, então, às metáforas bélicas. Nesta primeira grande-guerra do Covid, a primeira vítima, passe a repetição, foi o Turismo. Qual soldado raso de infantaria, o Turismo foi o primeiro na linha de fogo. Companhias aéreas, agências de viagens, hotéis, alojamentos, animação, restaurantes, tuk-tukes, e tantas outras actividades conexas, foram os primeiros a ser lançados na trincheira do confinamento e a sofrer o ataque, inclemente, dos obuses do distanciamento social. Neste admiravelmente asséptico “novo normal”, a Indústria da Hospitalidade é, ela própria, uma impossibilidade, um anacronismo, para o qual olharemos com saudade ou estranheza. Num tempo que nos obriga a andar de cara tapada, uma actividade cuja mercadoria é o sorriso, cuja moeda de troca é a cortesia, não tem, digamos assim, viabilidade económica.

Mas, seria injusto apontar culpas directas a um determinado governo pelo súbito colapso desta Indústria. Não foi só um ou outro Estado, ou região, que se fechou sobre si próprio. Foram todos os países ocidentais que, de um dia para o outro, suspenderam aquilo que era o oxigénio do turismo mundial – a livre circulação de pessoas. Porém, há, obviamente, diferenças, nuances, de país para país, de região para região, quer no grau de preocupação, como na rapidez do auxílio ou, até, na atitude geral para com a necessidade, para não dizer a vontade, de reinventar o sector.

O caso dos Açores é particularmente paradigmático de como o autismo do governo cavou, ainda mais fundo, a sepultura do Turismo. Fechados na sua bolha de preocupação clínica, obcecados pela demanda de cobrir as ilhas num imenso manto de descontaminação, Presidente do Governo e Autoridade de Saúde, tudo fizeram para fechar, isolar e desinfectar os Açores do perigo estrangeiro. Encerramento de aeroportos, cancelamento de voos, quarentenas obrigatórias, quarentenas “voluntárias”, e até, cúmulo dos cúmulos, apelos abertos e sem vergonha a que “as pessoas não se desloquem à região”! Como se já não fosse bastante, para a eutanásia do sector, a inadequação, insuficiência e, até mesmo, a clara injustiça dos parcos apoios de Estado, que em muitos casos mais não eram do que certidões de óbito encapotadas, o último prego no caixão foi, de facto, a forma como, com cada palavra e cada gesto, os responsáveis políticos regionais, foram regando a semente xenófoba que medra, mais ou menos timidamente, dentro de cada açoriano.

No que concerne aos apoios, desde o seu início se percebeu que não passavam de um eufemismo, para não dizer um logro. Pensos rápidos para tratar uma gangrena. A tentativa, desesperada, de conter os despedimentos, com layoffs, e só até ao final do ano, não visa proteger trabalhadores ou apoiar empregadores, busca apenas garrotar as estatísticas do desemprego até depois das eleições. Para além de que esquece todos os outros imensos custos mensais que sobrecarregam as empresas, como, por exemplo, a conta da EDA que nos Açores chega a ser obscena. Ou os custos de manutenção. Nestas ilhas em que a humidade se mede em metros cúbicos e não em percentagem, bastam dois dias de porta encerrada para crescer cabelo nas paredes de uma casa. Experimentem abrir uma porta no Nordeste depois de três meses fechada, a humidade entra-vos pelas narinas como uma má anfetamina. Por outro lado, incentivar o crédito a empresas já de si endividadas ou, cereja em cima do bolo, limitar os apoios a um critério de ausência de dívidas ao Estado, são tudo provas de como a última das preocupações deste governo, desde o Palácio de Santana ao Alto das Covas, é ajudar o Sector do Turismo. E, nem vale sequer a pena falar do Edifício CTT, onde, em total alheamento da realidade em que estamos metidos, a Secretária da Energia, (que certamente não leu a entrevista do Jorge Rebelo de Almeida ao Negócios, anunciando o cancelamento do investimento do Grupo Vila Galé no antigo Hospital de Ponta Delgada...) andava, ainda na semana passada, pasme-se, a enviar emails ao Trade, perdoem o jargão, a pedir contributos para um manual de boas práticas, enquanto todo o resto do país, Madeira na frente, já se prepara para abrir, se é que já não abriu, ao Turismo.

No entanto, o mais grave disto tudo, como se tudo isto não fosse já suficientemente dramático, é, sem margem para dúvidas, esse sentimento generalizado que se disseminou pela população, sustentado pelo discurso e acção do governo, de repulsa, renuncia e pura antipatia para com os que são de fora, e que extravasa de cada comentário a favor do isolamento geográfico das ilhas, como se este fosse, em si mesmo, uma vantagem e não a fatalidade que realmente é. Numa região que até há pouco mais de 20 anos vivia enclausurada nos seus xailes negros, numa região que, mesmo entre si, gosta de alimentar o odiozinho de ilha para ilha, numa região onde até há tão pouco tempo o exemplo máximo de bom atendimento num restaurante era o “vás comê e vás gostá”(!), nesta região, a postura conjunta da tríade Autoridade de Saúde, políticos e (perdoa-lhe Senhor que ele não sabe o que diz) Cónego Borges, em toda esta birra das ligações com o continente, deu cabo, quem sabe se por muitos e bons anos, daquilo que é o bem mais precioso de um Destino, e não, não estou a falar das belezas naturais ou da sustentabilidadezinha, estou a referir-me à arte de bem receber, a pura, simples e genuína, afabilidade. Aquilo que é, afinal, o ouro de qualquer Destino – a simpatia.

A simpatia, a hospitalidade e o bem receber, não se recupera com carimbos sanitários, nem com luvas de plica e máscaras comunitárias, nem com vídeos pseudocómicos com a Teresa Guilherme, nem sequer com anúncios empacotados em aviões da Ryanair à saída de Ringway. Ninguém quer ir a onde não será bem-vindo. E, foi essa mensagem – não queremos cá ninguém! – que andaram, Vasco Cordeiro, Tiago Lopes, até José Manuel Bolieiro, a passar durante estes dois meses e meio, mais o próximo que aí vem até ao início de Julho. A minha falecida avó, costumava dizer que "era preciso uma vida para se construir um 'bom nome', mas que bastava um dia para o perder". Aos Açores bastou um vírus com nome de cerveja. Que Deus lhes perdoe, a mim falta-me a paz de espírito para perdoar…

sábado, maio 23

Do desconfinamento


Num artigo, na revista Scientific American, sobre a evolução da pandemia de Covid-19, a epidemiologista e bióloga evolucionista da universidade de Chicago Sarah Cobey declara que “a questão sobre como a pandemia se desenrolará é pelo menos 50% científica e outros 50% social e política”. No fundo, o que a ciência e a história de passadas pandemias nos dizem é que na inexistência de uma vacina ou, havendo uma, da vacinação massiva dos 8 biliões de seres humanos do planeta, o vírus irá tornar-se endémico, circulando e infectando pessoas sazonalmente. Perante isto, a abordagem ao vírus depende, em igual medida, dos avanços científicos, quer na criação de uma vacina como, e mais importante, no desenvolvimento de medicamentos antivirais, que permitam o tratamento, bem-sucedido, dos infectados. Como, também, dos comportamentos sociais e das opções políticas. Neste aspecto, a questão do sucesso das medidas de confinamento, como forma de ganhar tempo, depende, em grande medida, do momento em que são impostas, pelos decisores políticos, e da sua aceitação e cumprimento, pela população. No mesmo artigo, é admitido que as medidas de confinamento foram mal sucedidas na Europa, ao contrário do que aconteceu em Hong Kong e na Coreia do Sul, porque foram impostas tarde de mais. Ainda sobre medidas de confinamento, Anders Tegnell, o já famoso epidemiologista sueco, em resposta a uma pergunta de Fareed Zakaria sobre se a opção da Suécia de não impor o confinamento tinha sido por razões económicas, Tegnell respondeu, peremptoriamente, que não, que essa opção era apenas baseada na percepção de que quaisquer medidas que fossem tomadas, para controlar a epidemia, teriam que ser sustentáveis no tempo, uma vez que a epidemia iria, como se pode constatar, prolongar por tempo indeterminado. Tegnell é também extremamente explícito na afirmação de que o seu papel é apenas de conselho, são os políticos que tomam as decisões, e não ele. Nesta altura de mais ou menos desconfinamentos, vale apena pensar sobre estas questões, agora que somos todos “suecos”. O confinamento e, por maioria de razão, o isolamento ou, no caso açoriano, o grande fechamento das 9 ilhas, não são um tratamento, são apenas medidas profiláticas, que teriam, tem, necessariamente que ser tomadas por um curto espaço de tempo, sob pena de, como se constata, os seus efeitos psicossociais e económicos serem ainda mais devastadores do que a, felizmente baixa, taxa de letalidade do vírus. O confinamento não é mais do que uma medida para conter a infecção permitindo, no entretanto, que os sistemas de saúde, as organizações políticas e a sociedade, como um todo, se possam preparar para a fase de disseminação da epidemia. Nos Açores, ao fim de praticamente dois meses e meio de confinamento, não temos qualquer informação sobre como o nosso sistema regional de saúde se apetrechou para efectivamente “combater o vírus”, essa expressão que tantos os políticos como a Autoridade de Saúde, essa entidade abstracta e de pulloveres coloridos, tanto gostam de usar. Não sabemos se foram montados hospitais de campanha para tratamento exclusivo dos infectados, libertando assim os hospitais para o seu funcionamento normal. Não sabemos se estamos devidamente capacitados em matéria de equipamentos de protecção, medicamentos, testes ou outros materiais imprescindíveis para o rastreamento e tratamento de pessoas infectadas. Nem sequer sabemos que medidas especificas foram tomadas para os grupos de risco, nomeadamente idosos, em especial os lares. Apenas sabemos que tivemos 146 casos confirmados de Covid-19 e 16 óbitos, sendo estes últimos praticamente todos num lar de idosos no Nordeste. No entanto, ao mesmo tempo e agora que vamos tateando no ar, vendados e a medo, o caminho do desconfinamento, conseguimos todos pressentir que há um outro inimigo, igualmente invisível e mortal, a crescer exponencialmente por entre os interstícios do nosso tecido social e económico, o vírus da brutal crise económica em que o confinamento nos mergulhou e do qual a morte por eutanásia governativa do sector do Turismo é apenas uma pequena parte, embora a que tem, para já, maior visibilidade e peso. E, pressentimos, igualmente, que, para esse outro vírus, para essa outra crise, do chamado “novo normal”, o Governo dos Açores, continua a não ter nem puta ideia do que fazer, só que agora com a agravante de que já não há “isolamento profiláctico”, seja ele voluntário ou não, que o ampare…  

sábado, maio 16

Equivalente ao espaço entre as orelhas...




Ao nosso redor o Mundo todo está a desabar. Por força dos múltiplos confinamentos, isolamentos e tantos outros ditames da ditadura sanitária, a Economia, desde a mercearia de bairro à grande empresa multinacional, travou a fundo, projectando-nos violentamente pelo para-brisas, em direcção ao asfalto, como passageiros sem cinto, no lugar do morto, de um carro na iminência de colisão. Lay-off, desemprego, brutal perda de rendimentos e ausência absoluta de verdadeiras ajudas de Estado, transformaram-nos em meros corpos ensanguentados, entre metal retorcido, num acidente de estrada. No meio desta dantesca realidade, o PS Açores decidiu fazer humor, publicitando nas redes sociais, com bonomia e um sorriso, pequenos memes sobre distanciamento social. Confortavelmente abancados nos seus salários em dia, os jovens assessores da vida partidária, (muitos deles transitaram directamente dos recreios dos liceus para os corredores do poder) entretiveram-se a plagiar imagens anedóticas, para ensinar os açorianos a distanciarem-se convenientemente uns dos outros, com ícones da vida insular como vacas, queijos, hortênsias e atuns. Esta palermice do PS-A é triste e insultuosa, desde logo porque o PS-A não é uma associação de estudantes, nem um grupo de comediantes, numa qualquer sala das Produções Fictícias, à espera de se transformar nos Gato Fedorento, até porque, para isso é preciso talento. O PS-A é um partido político e é o partido que governa os Açores. A exigência de consideração, seriedade e de responsabilidade perante o momento que vivemos é ainda maior para o Partido Socialista dos Açores. O partido que suporta o Governo da região, no momento mais dramático das nossas vidas, não se pode comportar como um adolescente imberbe, fazendo pouco das centenas de pessoas que viram as vidas suspensas, ou até totalmente destruídas, por esta crise e, imperdoavelmente, das dezenas de outras que perderam entes queridos nesta pandemia. Esta idiotice é inadmissível porque não há piada, não há humor, não há sequer um pingo de riso no confinamento forçado e no espectro fúnebre da pobreza que paira hoje, como uma guilhotina, sobre a população. Esta verdadeira marie-anttoinetice é, também, um insulto parvo e é-o porque trata os açorianos como imbecis que precisam de desenhos para compreender a ideia de distanciamento social e este é, provavelmente, o aspecto mais grave de toda este lamentável episódio. É que, a ser assim, os responsáveis do PS-A, desde os seus jovens criativos, aos seus históricos militantes, passando por “ilustres” dirigentes, não percebem que se existem hoje nos Açores cidadãos que precisem deste tipo de mensagem para compreender a gravidade do momento ou a seriedade das medidas a adoptar, tal só se pode ficar a dever, única e exclusivamente, ao total e absoluto falhanço das politicas educativas, sociais e económicas do próprio PS-A que, ao fim de 25 anos de poder, o tempo de uma geração, não conseguiu puxar para cima uma grande fatia da população dos Açores, seja nos índices de pobreza como no nível de escolaridade, ou na civilidade própria da mais básica cidadania. Estes memes, estúpidos e fúteis, são como Nero, tocando a sua lira, enquanto Roma ardia…

Slogans for the 21st Century


Douglas Coupland

terça-feira, maio 12

DESOBEDIÊNCIA CIVIL




Henry David Thoreau 
(Daguerrotype. Worcester-Mass. 1856)


A maioria daqueles que estão familiarizados com a Desobediência Civil associa-a,  geralmente, às figuras de Mahatma Ghandi e Martin Luther King sem ter porventura a noção de que o pai desta ideia ou, melhor dito, do termo em si mesmo, foi Henry David Thoreau que, na sequência de uma noite passada na prisão em Concord, Massachusetts, proferiu perante os seus concidadãos a palestra Resistance to Civil Government, depois publicada em 1849 sob o título Civil Disobedience.

Nos tempos que correm, em que o dito Estado de Direito foi sequestrado pelo Estado Sanitário, um filho improvável do Estado Securitário com que fomos brindados no início do século XXI, o ensaio de Thoreau é uma leitura assaz recomendável mas, infelizmente, este autor americano está pouco traduzido em português, uma língua de brandos costumes nada atreita a pensadores libertários. O povo português é de um civismo exemplar, conforme assegura ad nauseam o discurso político na sua habitual retórica, e dedica ao Estado uma devoção comparável à dos fiéis peregrinos de Fátima.

Thoreau foi preso porque se recusou a pagar um imposto, a Poll Tax, argumentando que a sua consciência não lhe ditava esse dever para com um Governo que, além de ter desencadeado de forma fraudulenta a Guerra do México em 1846-48, admitia a existência da escravatura nalguns Estados da União. Diz-se que quando um amigo o foi visitar à prisão e lhe perguntou – “O que é que fazes aí dentro?” – ele respondeu – “E tu, o que é que fazes aí fora?”. 

O último reduto da dignidade humana é a nossa consciência e Thoreau ensina-nos, de uma forma exemplar, a sermos objetores de consciência. Não sou jurista nem especialista em Direito Constitucional, mas até um analfabeto sabe, no íntimo da sua consciência, que um Estado para ser respeitado tem que se dar ao respeito!

sábado, maio 9

O Sindrome Nanni Moretti


Como vários epidemiologistas têm dito só saberemos a real dimensão e extensão da pandemia do Covid-19 quando esta terminar. Só aí se poderá fazer o balanço exacto dos infectados, dos mortos, dos que escaparam ao vírus. Porém, muito para lá da universalização da vacina e da OMS declarar o fim oficial da pandemia, as ondas de choque sociais, económicas e políticas desta crise far-se-ão sentir ainda, por muito tempo, como ecos de um vasto cataclismo. Se a caracterização correcta da crise social e económica levará décadas, as crises políticas provocadas pela “guerra” ao Covid-19, como gostam de dizer os políticos, são já, de certa maneira, claras. Uma das principais consequências desta crise na política europeia foi a forma como tornou evidente a incapacidade dos vários governos em tomar decisões políticas com base em ideologias e em colocar em primeiro lugar, não os seus, mas os interesses das comunidades. Com mais ou menos pequenas alterações a resposta dos vários governos europeus foi ceder à pressão popular e científica com a adopção de medidas de fascismo sanitário. Nem por um segundo os governos hesitaram na aceitação deste caminho autoritário e a grande massa dos cidadãos, levados pelo medo, aceitaram de livre e espontânea vontade esta via. Perante a necessidade de medidas imediatas, não se esperaria que houvesse lugar a referendos sobre a resposta ao Covid-19, mas seria legítimo esperar que os diferentes governos reagissem conforme as suas diferentes colocações no espectro político e isto, tendo em conta a resposta autoritária, é tanto mais grave nos governos ditos socialistas. A necessária ponderação entre os valores da saúde pública e a defesa dos direitos, liberdades e garantias era um imperativo ético e moral, particularmente, para os governos emanados destes partidos. Se as ciências médicas recomendavam uma resposta alicerçada maioritariamente no distanciamento social e no confinamento o dever dos governos socialistas era encontrar o necessário equilíbrio entre estas respostas e a defesa da liberdade e a garantia das protecções sociais que defendessem os mais fracos e desprotegidos dos efeitos cegos destas medidas. Aquilo a que estamos a assistir é a forma como o súbito confinamento, seguido de um desconfinamento hesitante, estão, em conjunto, a destruir a economia e o tecido social das nossas comunidades. Isto porque a verdade é que esta crise não atinge todos da mesma maneira. Há, desde logo, um fosso profundo entre sector público e sector privado. Entre ricos e pobres. Entre população rural e urbana. Entre o interior, desertificado e envelhecido, e o litoral. E o que se exigia a governos ditos socialistas eram respostas que minimizassem estas diferenças, que atenuassem os efeitos devastadores do combate à crise nos mais fracos e desprotegidos. Pelo contrário, o que assistimos é a uma governação imediatista e mediatizada tomada apenas por respostas impulsivas e avulsas. E, se as medidas de saúde pública são claramente autoritárias, as medidas económicas são fundamentalmente não-sociais. É caso para citar Nanni Moretti e, olhando para António Costa e, já agora, para Vasco Cordeiro, e pedir encarecidamente – façam alguma coisa de esquerda.

domingo, maio 3

Ler


 A Blind Girl Reading, Ejnar Nielsen, 1905, SMK, Copenhagen.

Com as livrarias fechadas e a circulação condicionada, abastecemo-nos de livros com os subterfúgios possíveis. Este é o tempo de remexer nas estantes e encontrar leituras proteladas ou esquecidas. Este é o tempo de encomendar online ou ao livreiro amigo, de vigiar o correio ou aguardar o toque da campainha. Este é o tempo de privilegiarmos as pequenas editoras e livrarias. As que trabalham por amor à literatura e ao livro. As que se alimentam e nos alimentam com proximidade e amizade. Sugiro duas. Uma editora e uma livraria. A Companhia das Ilhas e a SolMar. Qualquer uma delas preenche estes e outros requisitos. Qualquer uma delas nos oferece um excelente serviço. Encomendas aqui e aqui.

sexta-feira, maio 1

Sobre a desumanização


Ontem, já mesmo no final da sua longa entrevista à RTP, em que explanou os detalhes deste falacioso desconfinamento, António Costa declarou, com ar blasé, que o chamado Estado de Calamidade, que vigorará a partir das zero horas de Domingo, durará por tempo indeterminado. Com absoluta indiferença e com uma naturalidade apavorante, o Primeiro-ministro deixou escapar a grande verdade escondida desta pandemia: a completa e absoluta desumanização das nossas vidas está aí para ficar. Isto, a que chamam de “novo normal”, é o tempo do medo e do autoritarismo. Também, já há dias que um vídeo, de uma participante no Prós e Contras, supostamente com uma mensagem de responsabilização dos cidadãos face ao vírus, anda a causar furor nas redes sociais. Na verdade, o que transparece dessas declarações é a frieza desumana como as ditas ciências da vida olham para os Seres Humanos. Aos olhos da medicina não somos mais do que portadores da doença, cada um de nós é um Uber da contaminação, um aspersor de contágios, que nos saem pela boca, e que urge deter, confinar, isolar e mascarar. Ao medo, os Governos, que sem vergonha se declaram socialistas, alcandorados nas reuniões do Infarmed e na opinião avalizada de médicos, farmacêuticos, virologistas, matemáticos e todo um outro arsenal de doutos cientistas e Autoridades Sanitárias, responderam com choque e pavor. Com um regresso inexplicável à idade das trevas e a um incompreensível e inadmissível fascismo higiénico. Ao ponto de, a partir da próxima semana, as crianças, de todos os graus de ensino, das afortunadas e descontaminadas ilhas de Santa Maria, Flores e Corvo poderem regressar à escola, mas desde que devidamente mascaradas, desinfectadas e impedidas de ver os sorrisos umas das outras. Nas creches, as educadoras terão que cuidar dos mais pequenos de máscara, se calhar de luvas, coartando-se assim o acesso ao mais importante de qualquer cuidado, o calor humano. Tudo para que os pais, remetidos ao teletrabalho não tenham que as/os ter em casa. Também por tempo indeterminado aqueles de entre nós que mais precisam de apoio e de cuidado, os mais idosos, os doentes crónicos, terão de permanecer confinados, em isolamento profilático, dizem eles, quando na verdade o que querem dizer é abandonados e sós. Nos transportes públicos haverá multas para quem não usar máscara, enquanto eles, os privilegiados, continuarão nos seus carros topo de gama, quem sabe se com motorista, a olhar por detrás dos vidros fumados a queda no abismo da multidão dos desprotegidos, os que ficaram sem trabalho, os que viram os seus negócios fechados, os que foram deixados à sua sorte, os que perderam tudo. Entretanto, os Governos, apelidando-se desavergonhadamente de socialistas, o que dizem fazer é salvaguardar a sacrossanta “saúde pública”, o que nos querem fazer crer é que estão a salvar vidas. Mas, que vidas são essas que dizem proteger? Que Vida é essa se lhe retiram a mínima réstia de Dignidade? O que fica da Vida se lhe proibirem o afecto, o abraço? Que vida pode haver sem direito à Liberdade, sem Fraternidade, sem o dever primeiro e fundamental da Solidariedade? Durante séculos, milénios até, milhões de pessoas deram as suas Vidas por estes valores. Que sociedade somos nós hoje, que largamos mãos deles, que socialistas são estes que, em prol da ditadura das estatísticas e das curvas e do número de camas e ventiladores disponíveis nas UCI, governam sem honrar estes valores? Onde nos devíamos juntar para proteger e cuidar, afastamos. Onde devíamos compreender e ajudar, isolamos. Quando devíamos pedir ajuda, fechamos fronteiras. Tudo em nome do superior interesse dessa concepção abstrata chamada Saúde Pública. Um dia, saberemos que as vítimas deste vírus não foram os mortos, foi a nossa própria humanidade.

Lunáticos (!)


Esta semana, à crença de que «a necessidade aguça o engenho», somo a compreensão de que ela, a necessidade, numa feliz expressão atribuída ao génio que foi Platão, é também «a mãe de todas as invenções», sendo que o plural é da minha responsabilidade, por questões que não importa agora aprofundar.

A (im)preparação, ante a surpresa, atrasa a humanidade, mas não a detém(!) e, não sei se bem ou se mal, lá nos vamos conseguindo reinventar, umas vezes pior e, sobretudo, outras vezes melhor.

Aflige-me, no entanto, a ideia de que, tal como o escorpião picou a rã numa conhecida fábula, também esteja na nossa natureza darmos cabo do planeta, nosso hospedeiro, ao mesmo tempo que damos largas aos instintos de sobrevivência da espécie, seja lá o que «sobrevivência da espécie» represente para uma ou outra estirpe.

Para os »marretas« que nunca se rendem ao vírus, a qualquer que seja, venham eles de onde vierem, deixo a recomendação de leitura do livro Lunáticos, de Safi Bahcall.

Não obstante uma determinada sensação de uma vivência sequencial da humanidade, a vida também acontece nas faixas paralelas. São elas que, nas nossas autoestradas, permitem as viragens à direita ou à esquerda e, quando necessário, as inversões de sentido de marcha também.