Para muita gente,
por esse mundo fora, esta grande crise do Covid tem potenciado o ensejo de um
radical cambio civilizacional. Há como que um desejo latente e profundo de que
a humanidade se possa regenerar, possamos salvar o planeta, criar prosperidade
para todos e inventar uma nova utopia social de alegria, paz e amor. De repente,
no abrir de portas do desconfinamento surgimos todos na rua com o discurso da
Miss Universo. Cerca de 200 anos depois do alvor da Revolução Industrial
acordamos todos a citar Engels e Marx e a pugnar por um mundo onde o capital não
seja a força maior da opressão do homem. E assim vamos, em busca das novas
Itakas do bem-estar e da redistribuição equitativa da riqueza. Remediados de
todo o mundo uni-vos, contra os Gates, Bezos e Zuckerbergs da vida marchar, marchar!
O problema é que nem o mundo se transforma com tanta facilidade, nem tudo o que
conquistamos com o desarolhar do capitalismo ocidental é, necessariamente, mau.
Atente-se, por exemplo, o caso do Turismo. O Turismo foi, indiscutivelmente,
uma das grandes conquistas civilizacionais do mundo moderno. Se as Descobertas
deram novos mundos ao Mundo, o Turismo deu Mundo às pessoas e deu pessoas a
esses muitos mundos que compõem o nosso Mundo. Podemos argumentar, e serei
sempre o primeiro a defender esse argumento, que muito de pernicioso adveio das
actividades ligadas ao Turismo: a massificação, a poluição, a gentrificação, a
disneyficação, entre muitos outros palavrões sinónimos da desregulamentação e alienação
global provocada pela voragem desenfreada do Turismo selvagem, feito de turistas,
passe a redundância, em vez de viajantes. Mas, como disse Santo Agostinho, “o
mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas a primeira página.” E
nada promoveu mais a verdadeira democratização desse conhecimento do que a
Indústria do Turismo. Desde as primeiras linhas de caminho de ferro de 1800 aos
luxuosos long range da Emirates a circulação, mais ou menos acessível, de
pessoas pelo mundo todo foi um dos mais importantes fenómenos culturais da
modernidade. A democratização das viagens trouxe conhecimento, abriu horizontes
e, fundamentalmente, criou uma globalização de empatias e de afectos humanos,
para contrabalançar a essa outra globalização, a globalização fria e repugnante
do vil metal. Só que, de um dia para o outro, o Covid-19 destruiu tudo isso. Aeroportos
fechados, milhares de aviões no chão, companhias aéreas falidas ou em vias
disso, ao que acresce a estúpida tendência de querer transformar hotéis em
enfermarias e restaurantes em cantinas de hospital, com seis desinfecções por
dia, ditaram a morte do Turismo tal como o conhecíamos. Neste momento, há duas
forças em conflito na batalha pela “nova normalidade” do Turismo: de um lado os
que procuram, a todo o custo, retomar, reabrir, repor, custe o que custar, sem
demoras e sem, principalmente, ponderação e bom senso. O exemplo mais
paradigmático desta corrente é a aviação, que contra qualquer grama de sensatez
e, até, ao arrepio da espectativa dos próprios passageiros, procura, à força,
encher novamente aviões. Do outro lado estão os novos nacionalistas, defensores
do fecho total das fronteiras, e os puristas da new-age, que advogam um regresso
ao paleolítico humano, feito de vestes de cânhamo e psicadélicas viagens espirituais
pelo Éter da nova eco-globalização. Resta saber se, no meio deste yin-yang conceptual,
o simples gesto e o prazer íntimo de viajar, de absorver o mundo com os nossos próprios
corpos e emoções, se conseguirá salvar. Resta saber se o mundo que aí vem será
feito de e com pessoas, ou, apenas, de autómatos mascarados, desinfetados e devidamente
posicionados nos 2 metros de distância. Como diz a outra senhora – festejem os
golos, mas baixinho…
quarta-feira, junho 3
Processo de Covidização em curso...
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1 comentário:
...não acordamos todos a citar Marx e Engels...eu não, de certeza. Quanto a utopias só acredito nas que conheço da ficção científica.
Shalom
JN
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