terça-feira, janeiro 18

Sentado à mesa, sem guardanapos de papel (1)

Os sabores são uma parte decisiva da nossa memória. Quando era miúdo, o meu primeiro contacto com os Açores foi por via palatal. Aprendi muito cedo que o doce de capucho era, de longe, a melhor compota do mundo, seguido a uma confortável distância pela goiabada caseira. O terceiro lugar do pódio ia para a laranja amarga (nada de confusões com o Eng. Guterres).

Aprendi isto em casa da minha avó e tias, uma espécie de "Little São Miguel" em Lisboa, para onde a família se tinha mudado de armas e bagagens pouco antes do começo da 2ª Grande Guerra. Só vim ao mundo bem mais tarde, em 1958 (quando o Tratado de Roma foi assinado e Vladimir Nabokov publicou a Lolita), mas perfeitamente a tempo de educar a boca aos sabores açorianos. Sempre que alguém chegava da ilha e tocava à campainha do 2º Dto., era certo e sabido que tínhamos ananás e batatada à sobremesa. Com sorte - se a visita era da prima Meliza - a volúpia do açúcar prolongava-se com o seu célebre pudim de pão, que levava vinho do Porto e era flamejado com aguardente da Caloura.

O sétimo dos céus, contudo, apresentava-se sob a forma de massa sovada: densa e maciça, com uma réstia sábia de pinto a pedir manteiga. Ainda sou do tempo, pré-pasteurizado, em que o queijo de São Jorge estalava no céu-da-boca. Agora sabem a certificado, de papel. É a vida.

A avó Luz, a tia Josefa e a tia Henriqueta já lá estão, todas juntas, no cemitério dos Prazeres, um nome digno de parque de diversões. Guardo delas a maior das saudades e um sabor a sonhos perdidos, fofos e empapados em calda. Felizmente deixaram atrás alguns livros de receitas, dos quais sou fiel depositário. Jamais experimentei fazer algum doce, receando perturbar o saber centenário e conventual que se escondia por detrás daquelas linhas manuscritas. Só me aventuro nos salgados. De tempos a tempos postarei aqui uma receita, com a ortografia original.

Para já deixo-vos com os melindres, uns biscoitos cujo nome aconselha mergulho prévio em chá verde da costa norte.


Melindres

Um quilo d'açucar, um quilo de farinha, 8 ovos, 2 colheres de sopa de manteiga de porco e outro tanto de vaca, canela, herva doce, um pouco de sal e raspa de limão. O açúcar de cana - hoje não há, põe-se outro qualquer - mistura-se com a farinha, canela e herva doce, depois é que se junta o resto dos temperos. Depois de misturado fazem-se pequenos biscoitos ou SS, ou o que se quer fazer, e vão ao forno em taboleiros levemente untados de manteiga.

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