Estávamos à porta do carro do Luís, seis da manhã, mais ou menos, Ano Novo. Vindo do lado do Solar da Graça aproxima-se um rapaz, só de gente. Quando se começa a aproximar, noto que não vem só. Vem acompanhado de um copo com, aparentemente, whisky. E vem afirmando, -"Sou fodido... Sou fodido... Sou fodido..."-, a outra mão enviada, com vigor, no bolso.
O que falávamos, não me lembro, mas ele, o rapaz interrompeu-nos.
-"Feliz Ano Novo"- diz um bocadinho alto. O Luís e eu respondemos. Eu um bocadinho mais alto do que o Luís. Eu acredito que isto com os bêbados exige que se imponha respeito logo de início.
O rapaz estende a mão. Eu também. Ele faz um esforço para fazer pontaria no sentido da minha. Eu decido ajudar e avanço de encontro à sua mão. Acabados os cumprimentos, ele começa a tentar comunicar com a sua língua meia dobrada.
- "Eu estou a estudar lá fora..., na universidade..., e venho da passagem de ano no Solar da Graça..."-. Obviamente dois dados importantes para a vida deste rapaz. Não percebi se de igual importância.
-"Tenho aqui whisky..., num copo de vidro..."- dito isto olha para nós com ar de façanha heróica -"trouxe de lá..."- e faz uma tentativa de apontar para trás na direcção do Solar da Graça.
-"Bebe aí um bocado..."- ainda não tinha acabado a frase e já o copo se encontra muito perto da minha cara. A minha cara responde-lhe muito antes do que a minha boca, e quase simultaneamente com a do Luís sai um -"Não muito obrigado!"-.
-"Eu não tenho doenças..."- desta vez o copo aproxima-se da cara do Luís que, delicadamente, se defende com a sua mão e o copo faz ricochete de volta, no sentido da minha. Mais uma vez negamos e agradecemos. O rapaz aparenta que vai insistir na oferta mas no último momento desiste, inspira profundamente e pede um cigarro. Olha para mim, eu digo que não fumo e ele imediatamente olha para o Luís e, para não repetir a conversa, leva os dois dedos à boca, tipo sinal de vitoria à Churchil, indicando que continua à procura de cigarros. O Luís, benemérito, diz-lhe que não tem cigarros mas sim cigarrilhas. -"Ainda melhor"- responde entusiasmado -"ainda melhor"-. O Luís saca da carteira e sempre em espírito de Natal estende-lhe a mão com uma cigarrilha entre os dedos. O rapaz avança com os seus dedos churchilianos, concentra-se e, com cuidado, engata entre os dedos a dita cigarrilha. Esboça um sorriso de quem acaba de desbravar mais uma façanha e com mais alguma facilidade aponta com a cigarrilha para entre os lábios.
-"Lumes?"- pede, enquanto risca um fósforo imaginário no ar daquela noite quase manhã. Eu, como não fumo, nem procuro e olho para o Luís que começa aquela dança típica de fumador que procura o seu isqueiro. Quando me deparo com este tipo de performance sempre me vem à cabeça aquela música "baila comigo, alegria Magalena, baila comigo, alegria coisa buena". E as mãos do Luís vão dos seus bolsos da frente aos bolsos da camisa, daí até aos bolsos de trás dos jeans e finalmente até ao encontro do famigerado isqueiro no bolso interior do casaco. Durante este acto os olhos do rapaz e os meus seguiram as mãos do Luís como quem segue uma bola de ténis durante um jogo renhido. O Luís faz o simples favor de acender o isqueiro e aproximar da cigarrilha, por acreditar que seria matéria de alguma dificuldade para aquele estranho estranho.
O rapaz chupa do fumo e dá indicações que vai continuar a conversa ou, no mínimo, quer testemunhar a nossa. Chega mesmo a iniciar uma palavra com os seus ombros e braços mas nada. Finalmente, depois de um esquisito silêncio, numa noite fria, numa rua deserta de gente, excepto nós três, em silêncio, de novo com a minha voz forte, que uso para com os bêbados, desejei ao estranho rapaz de novo um Bom Ano. Estendi-lhe novamente a mão, ele procedeu a uma dança desequilibrada com seu copo acompanhante e a cigarrilha, até acabarem os dois, copo e cigarrilha na sua mão esquerda, o que permitiu, finalmente, que a sua mão direita fizesse mais uma tentativa de vir de encontro com a minha. Cumprimentamo-nos. Virei-me para o Luís, e na certeza de estarmos juntos em breve, talvez até ainda hoje, numa hora mais de gente se encontrar, pisquei-lhe o olho e despedi-me. Viramos em uníssono as costas ao estranho, não fosse um de nós, também, ficar ancorado àquele copo de whisky, e afastamo-nos cada qual para o seu carro. Já estava a alguma distância quando o rapaz finalmente balbuciou alguma novidade, mas eu nem tive que fingir que não ouvi nada.
Espero que neste ano novo chegues são e salvo a casa rapaz estranho, pensei.
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