sexta-feira, abril 7

V for Vendetta

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Sexta-feira, ao final do dia, com a bênção de ter tempo para matar atrevi-me a entrar na nossa "cinecittà" sob as portas da Castello Lopes. Visceralmente senti-me tentado a dar meia volta pois, no foyer, o concentrado de testosterona emanado pela audiência de Brokeback Mountain misturava-se enjoativamente com o aroma de pipocas caramelizadas. Como não fico embevecido, nem com cowboys, nem com popcorns adocicadas, teria ido trincar qualquer coisa não fosse o cartaz que anunciava Freedom Forever. Com essa sugestiva promessa paguei os ? 4,70 da praxe e acomodei-me numa sala enorme, tendo apenas por companhia um casalito teen mais entretido na higiene oral de cada um deles do que numa cinéfila ménage à trois. Em suma, julgo que vi o filme sozinho, mas V for Vendetta é memorável e por certo arrisca-se a ser uma fita de culto.

O enredo tem por lastro uma BD de Alan Moore e o cenário é uma Londres que num futuro próximo é governada por um tiranete fascista de inspiração ariana. Na pátria da Magna Charta Libertatum as liberdades individuais foram suprimidas, e os bifes vivem uma paz social podre sem sobressaltos pois, de certa forma, foram lobotomizados por um governo que conspirou contra o próprio povo, forjando um ataque terrorista para justificar o assalto ao poder e a dissolução da democracia liberal. Seja como for, nessa sombria Inglaterra, dominada pelas botas cardadas de um poder totalitário, os Ingleses vivem num estado comfortably numb...até que aparece V, um sinistro mascarado com o fácies de Guy Fawkes. Fawkes foi um terrorista que no século XVII fracassou em explodir as "House of Parliament" (incluindo o famoso BigBen), fracasso esse ainda hoje celebrado no Reino Unido em 5 de Novembro, mas que no filme é retomado como promessa, desta feita de catarse colectiva e de libertação. V retoma a simbólica personagem de Fawkes e avisa-nos logo no prólogo desta aventura panfletária: «Remember, Remember, the fitth of November, the gunpowder treason and plot. I know of no reason why the gunpowder treason should ever be forgot.». Um filme perigoso? Por certo seria uma arma de demagogia primária acaso tivesse caído nas garras de Michael Moore, mas felizmente é apenas uma feliz adaptação cinematográfica de um êxito da BD dos anos oitenta.

O filme tem vários motivos de interesse a começar pelo misterioso V cuja patine justifica o recurso às citações de clássicos como Aristóteles, Shakespeare e Goethe, embora o estilo seja mais o género de um Thoreau. Depois, em V for Vendetta há uma série de gimmicks que emprestam uma ironia deliciosa a esta película. Dessa sarcástica ironia é bom exemplo a deliberada utilização do actor John Hurt para representar o tecnologicamente omnipresente Alto Chanceler. Este tirano reduziu a Inglaterra a uma corruptela nazi onde a música foi proibida, o recolher obrigatório é geral, a homossexualidade é punida com prisão, os imigrantes são repatriados, as raças de cor foram devolvidas à procedência, a comunicação social é de canal único, bem como a religião que é una e liderada por um bispo pleno de públicas virtudes e pedofilias privadas e, claro está, presume-se que a Monarquia foi extinta. Onde está a ironia? Desde logo, a ironia é que tudo isto nos é servido num registo Orwelliano ao estilo da seminal novela 1984, sendo que, em V for Vendetta, o mesmo John Hurt que havia em Nineteen Eighty-Four representado o papel de oprimido na personagem de Winston Smith passa agora, em V for Vendetta, a opressor em estilo Big Brother. Outro pormenor interessante é a performance deliciosa de Hugo Weaving no papel de V. Desta feita o infame Mr. Smith da saga Matrix veste a pele de V o nosso herói com british accent.

V for Vendetta roça o estilo de film noir que não acredita da redenção e no perdão, afinal para o herói V «the only verdict is vengeance; a vendetta held as a votive, not in vain, for the value and veracity of such shall one day vindicate the vigilant and the virtuous.». Mas, muito mais do que uma trama em que um mascarilha tem a pancada de engendrar frases com superávit inicial de V(s),a questão que o filme coloca é até onde somos capazes de transigir em troco de uma segurança totalitária e, por contraponto, se seríamos capazes de sacrificar a própria vida para tentar atingir um mundo que acreditamos ser melhor e mais livre. A resposta apoteótica emerge ao som da Abertura 1812 de Tchaikovski num gran finale operático a piscar o olho aos grandes épicos panfletários de Hollywood.

Apesar de tudo estamos perante um filme de ficção de ciência-política até porque a boa e velha Inglaterra liberal prevalecerá.
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posted by João Nuno Almeida e Sousa

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