domingo, abril 2
CANADA DRY
Eu sei que vai um bocado ao arrepio do mainstream, mas acho o Canadá um sítio simpático. Tem coisas europeias e americanas, costa e contracosta, lagos como migalhas de pão numa toalha de refeitório. Isto sem contar com o Leonard Cohen e o Neil Young, a Joni Mitchel e a Margaret Trudeau, que é para respeitar as quotas de género. Além disso é um país assepticamente tolerante. Depois das tropas especiais americanas serem humilhadas em Mogadiscio, o Canadá recebeu vagas de somalis com os braços abertos. Em matéria de sexo, então, vale tudo menos dar cabeçadas no céu-da-boca. Há uns anos atrás fiz uma palestra na Robarts Library, em Toronto, sobre a emigração açoriana para o Brasil no século XIX. O moderador da sessão tinha ares de Marilyn Manson. Perguntei à pessoa que me acompanhava quem era o personagem. Hoje é a Jane, vem de salto alto e meia de nylon, foi a resposta. Como assim? Insisti. Há dias em que é o John e, conforme o seu estado de espírito, envia mails aos colegas de Departamento a notificá-los da identidade sexual que irá assumir. O esclarecimento foi dado de forma tão natural, que até tossi. Desde esse dia os Mountain Guards deixaram de ser um símbolo canadiano no meu imaginário. A Jane-John tomou-lhes o lugar. Depois desta experiência ontológica de canadianess, percebi que até os comportamentos desviantes têm uma forma by the book de ser aceites naquela sociedade.
Manifestamente, muitos dos portugueses que estão agora a ser deportados do Canadá não agiam by the book. Ou então fiaram-se na Nossa Senhora de Fátima, convencidos de que passavam por refugiados somalis. Pasmo com as reacções de virgem ofendida que este processo está a despertar. As comunidades portuguesas sempre foram as filhas de um Deus menor para a nomenklatura do Palácio das Necessidades. Agora que a castanha estalou na boca do Ministério dos Negócios Estrangeiros, talvez seja tempo de mexer as águas do pântano e agilizar, social e culturalmente, a diplomacia do croquete. Poderá ser inconstitucional e politicamente incorrecto, mas os parlamentares e governantes açorianos deviam repensar as suas relações com a República em matéria de Comunidades. É uma falta de atrevimento lastimável os Açores não terem agenda cultural e económica própria em relação à sua diáspora no continente americano. Entre o Instituto Camões e a Casa dos Açores de Toronto, que marcam o perímetro da nossa condição esquizofrénica, há um imenso Canadá de espaço por ocupar.
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