1.
«Million Dollar Baby» que, na praxe das traduções abstrusas que por cá se fazem, ficou rotulado como «Sonhos Vencidos»(!), venceu com mérito a última coroação dos óscares. Cá por mim bem podia prescindir das estatuetas e nem por isso deixaria de deter todo o mérito de ser um excelente filme. Todavia, o preconceito congénito da intelectualidade Europeia olha sempre com desconfiança para este tipo de cinema, e acha sempre «déclassé» tecer loas a um filme burilado por um ícone Americano que deu corpo e voz ao implacável Dirty Harry. Ora, esta mesma «inteligentzia» quando percebe que o filme não é sobre boxe inflecte o raciocínio abrindo alas para uma análise da eutanásia. Todavia, o filme não é nem sobre o boxe nem um manifesto a favor da eutanásia, é apenas uma história de amor!
Neste último filme de Clint EastWood não se espere do mesmo uma espécie de panfleto neo-realista a favor da eutanásia, filmado sob os cânones de uma escola cinematográfica que faria delirar qualquer Cine Clube patrocinado pelos habituais «maître-à-penser» do Bloco de Esquerda e afins! Nada disso!
É certo que a realidade do filme é a violência escalavrada de um ginásio mas aí também reside a magia da luta que supera as improváveis condições com que tantas vezes se parte para o ringue da vida. É nesta banalidade que reside a dignidade da primeira e segunda parte deste filme pois, afinal, como nos ensina um ancestral mantra yoga «o verdadeiro heroísmo está em conquistar a nossa própria natureza».
Porém, quando se sai deste filme não se traz colada à pele a impressão de ele mudou a nossa vida. Apenas se recorda o calvário de uma vida banal e de um acidente que tolheu qualquer esperança de contrariar essa vulgaridade. Não! O filme não é sobre boxe ou sobre a eutanásia... esse é o pano de fundo de cena a uma inesquecível história de amor, e a outras tantas histórias de dignidade humana e de lealdade. No resto, a «fita» é irrepreensível nos desempenhos de Hillary Swank e Morgan Freeman.
2.
 «Os Cobardes morrem muitas vezes antes de morrerem;
 O corajoso só uma vez o sabor da morte prova.
 De todos os prodígios de que ouvi falar,
 O mais estranho me parece que temam os homens;
 Posto que a morte, um fim inescapável,
 Virá quando tiver que vir»
Bem o sabemos que em «Million Dollar Baby» as primeiras linhas desta peça dramática do Júlio César de Shakespeare por certo assentariam algures nos píncaros da tragédia de Maggie encarnada por Hillary Swank. Porém, vieram aqui parar por via da «Mancha Humana», de Philip Roth, numa edição de 2002 da D. Quixote. Nesta obra prima da moderna literatura norte americana, se quisermos, acompanhamos «the rise and fall» de Coleman Silk... personagem de ficção que esconde no seu passado os êxitos de boxeur, bem como guarda, no mesmo baú de vergonhas para a dignidade de um emérito Académico, outros segredos menos dignos. Mas, o mais torpe e vil é o que se vai desmontando ao longo do livro. Apesar de todo o lustro Académico, e da dignidade social laboriosamente adquirida ao longo da vida, Coleman Silk tem a sua mancha humana, e quando - injustamente - cai em desgraça percebe que «as coisas são como são: nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca... é por isso que toda a purificação é uma anedota. E uma anedota bárbara, ainda por cima!».
Na voragem dos dias que correm não vale a pena perder tempo com má literatura, e enquanto o mercado editorial estiver povoado de anjos e demónios, demandas pelo santo graal, códigos desvendados e desenganados, mais vale fazer a apologia do que já não é novidade, mas sempre se deve degustar com prazer! Assim, aqui fica esta «Mancha Humana», de Philip Roth, enquanto não sai a tradução Portuguesa da sua mais recente obra «The Plot Against America».
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hoje no Suplemento de Cultura do Jornal dos Açores
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(Post Scriptum: a Adaptação Cinematográfica de «The Human Stain» com uma escanzelada Nicole Kidman e um incongruente Anthony Hopkins é mesmo Cinema Xunga)
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