quarta-feira, maio 25

Esquiços para uma ideia de açores VI

Quem é, então, o açoriano?
Os grandes traços do esqueleto açoriano foram já definidos. O afastamento das ilhas em relação aos continentes e centros de civilização e cultura que se resume em uma palavra - isolamento. O clima, na sua imprevisibilidade e propensão para a tormenta, mas e em simultâneo ameno e benigno. A terra, fértil, vulcânica, escarpada, verde. O mar, tanto amigo como inimigo, tanto horizonte como prisão. A formação do povo açoriano com a sua génese variada mas vincadamente portuguesa. O evoluir da vida arquipelágica com as ilhas afastadas uma das outras e onde a noção de arquipélago é apenas presente no grupo central o que levou a um desenvolvimento em nove ritmos diferentes. A agricultura como principal actividade e ocupação do povo e motor essencial da economia. A pesca como suplemento pontual. A organização social fortemente estratificada, numa pirâmide de privilégios onde poucos detêm muito e muitos se amanham com quase nada. É deste esboço que se vai desenhar o açoriano. Mais uma vez são poucos os trabalhos antropológicos, de sociologia, de psicologia, de história, existentes sobre o ser açoriano. De entre os que encontrei o mais significativo é sem dúvida o texto de Luís da Silva Ribeiro, Subsídios Para Um Ensaio Sobre a Açorianidade. O trabalho de Silva Ribeiro é, pela sua dimensão e acutilância, a melhor fonte para um esboço do carácter açoriano. Silva Ribeiro embrenha-se na cultura açoriana numa perspectiva antropológica e etnográfica na busca de traçar uma verdadeira etnogenia, palavra por si utilizada, do povo açoriano. Partindo de quatro traves mestras de relacionamento e sustentação faz Silva Ribeiro um retrato bastante expressivo e elucidativo do carácter açoriano. A primeira das suas preocupações é o binómio Vulcanismo e Religiosidade. Aliás, numa obra recente e bastante interessante, Deus um Itinerário do filósofo francês Régis Debray, a tese da ligação profunda entre o meio físico e a criação de uma ideia do divino é defendida com bastante sagacidade. Silva Ribeiro propõe um surgimento das fortes convicções religiosas do açoriano fruto da imprevisibilidade e grandeza de fenómenos naturais como erupções e sismos que provocam no ser humano uma «noção mais perfeita do que nunca, daquilo que é eterno e omnipotente». A religiosidade é um dos mais profundos aspectos do carácter insular e manifesta-se em inúmeros rituais e festividade populares cuja maior de todas é as Festividades do Senhor Espírito Santo e mantêm-se mesmo na diáspora. O segundo aspecto é a relação entre Humidade e Indolência. Ou como o clima vai amplificar o torpor próprio do português no açoriano. «O povo açoriano é indolente, posto que trabalhador por necessidade» diz Silva Ribeiro. E é no folclore, no cancioneiro, nas festas e bailes populares que se encontra inequivocamente esta apatia, as canções são arrastadas e lentas e com uma solenidade inusitada. As danças revelam um esforço e uma moleza peculiares. «...a nebulosidade e a tristeza da paisagem, combinadas talvez coma a monotonia do marulho da vaga e do horizonte sem fim do mar, dão ás almas um tom sombrio, que é, quanto ao espírito, coisa semelhante à indolência física.» De braço dado com a indolência o saudosismo que «impregna a alma açoriana». A isto junta-se a insularidade e o afastamento das ilhas em relação ao mundo: «Quando o continental se sentia dominar nos lugares mais afastados do mundo, nas ilhas caía-se no torpor do clima, debaixo do terror dos fenómenos vulcânicos e no jugo e exploração dos capitães donatários. Isto prova a sobrevivência, nas ilhas, das tradições com maior intensidade e tenacidade; pela separação da corrente principal dos ideais e dos factos, a tradição dos Açores mantêm-se quase na primitiva, enquanto que, no continente, sofre uma elaboração constante.» Conclui Silva Ribeiro: «Do conjunto de factos até aqui expostos, não obstante o seu restrito número e as inevitáveis lacunas provenientes da insuficiência de estudos preliminares indispensáveis, só parcial e superficialmente realizados, parece-me poder concluir-se que o meio insular actuou bastante no moral dos homens que em meados do século XV se fixaram nos Açores.
Essa actuação parece ter produzido mais modificações quantitativas do que qualitativas do carácter português.
Estão no primeiro caso o exagero do saudosismo, o aumento e transformação do espírito religioso, a atracção do mar, que tornou a emigração quase uma necessidade instintiva, a conservação de ideias, noções superstições e costumes desaparecidos já no Portugal continental ou em vias de desaparecerem.
Estão no segundo caso, de modificações qualitativas, a apatia e espírito de moderação, certo grau de subserviência, a substituição do lirismo pela sátira, a limitação do conceito de pátria com referência ao arquipélago e mais ainda à ilha da naturalidade.
»

É este pois o melhor, mais completo e fundamentado retrato do ser açoriano. Não posso deixar de recomendar a sua leitura na totalidade (Subsídios Para Um Ensaio Sobre A Açorianidade de Luís da Silva Ribeiro) Este estudo embora publicado pela primeira vez em 1936 em fascículos no jornal Correio dos Açores e posteriormente coligido em livro, não se encontra de forma nenhuma datado. E se obviamente algumas alterações se registaram no açoriano nos últimos 70 anos tudo o que por Silva Ribeiro é descrito se mantêm ainda hoje na personalidade e carácter dos habitantes destas ilhas. E daqui parto para Nemésio, e porque esta inversão cronológica, porque se bem que tenha sido Vitorino Nemésio o patenteador em 1928 do termo Açorianidade, inspirado na hispanidade de Unamuno, parece-me que esta criação de Nemésio é mais uma invenção poética do que uma realidade sociológica e Silva Ribeiro é um dos fundamentos para esta minha sensação. Mas isso é a matéria do próximo post.

Bibliografia: para além do já amplamente citado trabalho de Silva Ribeiro e de outros referenciados em posts anteriores, os seguintes; Açorianidade e autonomia: páginas escolhidas, nota introd. Eduardo Ferraz da Rosa; recolha e selec. de textos Carlos Cordeiro, José Mendonça Brasil e Ávila, Eduardo Ferraz da Rosa, Ed. Signo; Ilhas Desconhecidas de Raul Brandão; A Identidade Cultural dos Açores de A. M. Machado Pires. Estes e outros textos sobre os Açores e Açorianidade podem ser encontrados no site da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada.

Sem comentários: