terça-feira, março 1

OUTROS MARÇOS

O 1º de Março de 1821


Veio-me hoje à cabeça uma melodia da saudosa Pimentinha (obrigado, Maria Rita, por existires, mas não me fazes esquecer a tua mãe), lembrei-me das Águas de Março, da Elis Regina. Terão sido elas que levaram da nossa memória colectiva o acontecimento fundacional do pensamento autonómico açoriano?

Não, não me refiro ao 2 de Março de 1895, data canónica do calendário autonomista, mas sim àquilo que aconteceu setenta e quatro anos antes, no dia anterior. Ou seja, falo do 1º de Março de 1821, o qual assinala a adesão de São Miguel à Revolução Liberal proclamada no Porto em 1820 e, simultaneamente, a sua libertação do governo centralista sedeado na Terceira, desde 1766, por imposição das reformas político-administrativas lançados no arquipélago pelo Marquês de Pombal. Sempre estranhei o silêncio ensurdecedor que há em torno deste acontecimento, como que remetido à clausura por sucessivas gerações de açorianos, designadamente a dos principais ideólogos da Autonomia, Aristides Moreira da Mota e Mont'Alverne de Sequeira. Nem mesmo em Ponta Delgada, onde se desenrolou a Revolução do 1º de Março de 1821, há uma miserável placa toponímica a assinalar o evento. É obra.

A autonomia, como todos sabemos, é uma reivindicação quase que orgânica da periferia relativamente ao centro, uma espécie de condição axiológica. Acontece, contudo, que centro e periferias são conceitos de geometria variável. Nem sempre o centro foi Lisboa, nem sempre nas ilhas existiu um sentimento de unidade. O arquipélago, sobretudo um arquipélago como o nosso, é um conjunto de ilhas espacialmente hierarquizado, com uma topografia política própria. Entre 1766 e 1821, a ilha de São Miguel sentiu na pele o peso do paradoxo: a sua centralidade económica convivia mal com a condição de periferia política e administrativa da Terceira. Não admira, portanto, que os oligarcas micaelenses tenham cavalgado sem hesitações a onda do Liberalismo para soltarem o seu grito do Ipiranga relativamente ao domínio da Angra pombalina. Pouco tempo depois os faialenses fizeram o mesmo. Os Açores, afinal, não tinham uma só cabeça. Verdadeiramente, aliás, nunca a tinham tido, nem mesmo nos tempos em que Angra era a escala de todas as Índias. Tradicionalmente, as ilhas açorianas sempre foram uma estrutura policêntrica. A reforma de Pombal, ao introduzir a matriz monocêntrica, bem pode ser comparada a um metafórico terramoto político. Sebastião José pensou que poderia construir uns Açores modernos e iluministas a partir do zero, como se estivesse a escrever num papel em branco. Enganou-se, porque os Açores, ao contrário de Lisboa, não vieram abaixo e foi difícil desenhar a nova arquitectura política sobre a paisagem pré-existente. Este ímpeto racionalista do Marquês, bem como o traço moderno do seu desenho, teve o condão de exorbitar a consciência de ilha entre os micaelenses, que se consideravam a si próprios como uma República ou, nas palavras do Cadete José Medeiros da Costa Albuquerque, em 1781, como o País mais fértil da Europa. Foi este mesmo homem que, quarenta anos passados, já com o posto de Capitão (do Presídio do Castelo de S. Brás), leva a Lisboa a proclamação de independência da ilha de S. Miguel feita pelos revoltosos de 1821. Morreu quase miserável num quarto do Hospital da Misericórdia de Ponta Delgada em 1831 e o seu nome nem sequer aparece em rodapé na vulgata da Autonomia açoriana. Percebe-se porquê, aliás. Aquilo que ele personifica não é bem a Autonomia, mas antes um outro conceito grego também nascido no contexto arquipelágico do Mar Egeu: a Autarcia, a capacidade de se bastar a si próprio. São Miguel imaginou-se e agiu como uma verdadeira cidade-estado durante grande parte do século XIX, não deixando de ser significativo notar que isso ocorreu exactamente durante o ciclo económico da laranja. Quando a 1ª geração autonómica entra em cena, no crepúsculo da Monarquia Constitucional, a laranja já tinha passado à história e as ilhas estavam confortavelmente arrumadas na estrutura tripolar dos Distritos, consagrada pelo Liberalismo. Em 1895 o centro era Lisboa e, curiosamente, o Presidente do Conselho de Ministros, Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, era micaelense. Dessa efémera geometria política, resultou o Decreto-Lei de 2 Março de 1895 que concedia autonomia administrativa aos Açores ou, para ser mais rigoroso, aos Distritos açorianos. Goste-se ou não, a certidão de nascimento da Autonomia está marcada pelo politicamente correcto.

Fica mal falar disto, eu sei. Mas tem que ser. E o que tem que ser tem muita força.

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