terça-feira, março 15

O JULGAMENTO SEM RESPOSTAS ?

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Caso de pedofilia nos Açores começou ontem a ser julgado

«O «caso da Garagem», um processo em que dezoito arguidos são acusados de ter abusado sexualmente de duas dezenas de menores em Lagoa, ilha de São Miguel, começou ontem a ser julgado pelo tribunal de júri de Ponta Delgada, sob rigorosas medidas de segurança e debaixo de um denso manto de silêncio por parte de advogados e arguidos.

O caso será julgado por um colectivo composto por três juizes e quatro jurados (três mulheres e um homem). Além dos 18 arguidos estão arroladas 186 testemunhas, a esmagadora maioria (160) indicadas pela defesa.

«Não comento», «não presto declarações», foram as duas frases mais escutadas à porta do tribunal, entre ameaças dirigidas aos jornalistas pelos dois irmãos de José Augusto Pavão, também conhecido por Farfalha, o proprietário da garagem onde terão sido cometidos os crimes. Só Luís Arruda, antigo delegado de Saúde de Lagoa, acusado de oito crimes de abuso sexual, furou o silêncio para se manifestar «confiante» na sua absolvição.
Além do silêncio (uma marca do processo açoriano por oposição ao «caso Casa Pia»), outro dos objectivos do tribunal parece ser o de imprimir celeridade ao rumo das audiências: ontem foram já ouvidos quase todos os arguidos assim como uma das testemunhas de acusação. Hoje deverão iniciar-se as inquirições às restantes testemunhas.
No interior do tribunal, o silêncio acabou por ser, também, uma das estratégias seguidas por alguns arguidos, com destaque para Farfalha (acusado de 43 crimes de abuso sobre menores), o elo de ligação entre todos os arguidos, que prescindiu de prestar declarações na abertura da audiência. Isto, apesar de se reservar ao direito de ser ouvido pelo tribunal numa fase posterior das audições. A esmagadora maioria dos arguidos, no entanto, optou por responder às questões do colectivo.

A celeridade é, no entanto, uma das marcas do processo açoriano. Vários dos intervenientes no caso, contactados ontem pelo PÚBLICO, garantiam que o objectivo é conseguir concluir o julgamento até à próxima sexta-feira de forma a evitar a interrupção para as férias judiciais da Páscoa, marcadas para o próximo dia 21. Se tal não acontecer, as audiências serão interrompidas até ao dia 28 de Março.
No exterior do tribunal, a indiferença acabou por marcar o primeiro dia de julgamento. Parecem distantes os dias em que centenas de pessoas se concentravam à porta do edifício para assistir à chegada dos arguidos e às movimentações de jornalistas à procura de comentários. «As pessoas estão fartas deste assunto», confessava uma idosa a outra, no passeio fronteiro ao tribunal, enquanto a interlocutora estranhava o facto «dos pais dessas crianças não estarem também a responder». «Muitos deles sabiam o que se estava a passar e também deviam responder», afirmava repetidamente, enquanto completava o raciocínio com a alegação de que «essa culpa não quer dizer que os outros (arguidos) tenham qualquer desculpa».

Deolinda Pavão, mãe de Farfalha, esteve também presente no início do julgamento para «apoiar o filho» e contestar o processo: «Essas miúdas desgraçaram a vida dos meus filhos. Desde que isto aconteceu ninguém lhes dá trabalho. Estão desgraçados por causa disto tudo». Além de Farfalha, dois dos irmãos são também arguidos no processo, acusados de tentativas de coacção sobre várias testemunhas.
Durante os próximos dias não passará pelo tribunal de Ponta Delgada qualquer representante dos menores que terão sido vítimas dos abusos, já que nenhuma das famílias exerceu a opção de constituir-se assistente do processo. Além disso, os depoimentos dos menores foram recolhidos para memória futura ainda durante o decurso do inquérito liderado pelo Ministério Público. O MP é também o responsável pelos pedidos de indemnizações cíveis que ascendem ao valor de 225 mil euros.»


Por Nuno Mendes, no Público de 15 de Março de 2005

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O circo está montado e a última exibição da Companhia Farfalha é, por enquanto, sine die. Sem data marcada ficarão também as respostas que não constarão dos quesitos deste Julgamento.

Desde logo, a primeira pergunta é como compreender a impunidade dos «Tribunais da Comunicação Social» montados num carrocel de boatos que veio a redundar em lugares vazios no respectivo banco dos réus. A mácula que deixaram no nome de pessoas que, até prova em contrário, se presumem serem de bem e inocentes, causa asco e repugnância. Tal impunidade só se compreende com a promiscuidade que permitiu, neste caso e noutros, que a trupe de habituais justiceiros da comunicação social tivessem acesso privilegiado aos camarins onde os actores deste drama iam preparando a peça. Para que não se diga que isto é mera especulação bloguística recordo que, por exemplo, aquando das detenções para primeiro interrogatório judicial dos ora arguidos, a comunicação social regional e nacional montou bem cedo o seu estaminé nos paços da entrada do Tribunal. Coincidência?

A segunda pergunta que ficará por responder é a razão que terá levado os pais dos menores, «alegadamente» abusados, a não se terem constituído assistentes nesta monstruosa diversão da garagem da Lagoa. O ruidoso silêncio desta paternidade cúmplice não deixa de espantar. Será que estas «crianças» não mereciam pais melhores?

A terceira e última pergunta que ficará, por enquanto, sem resposta é a de saber se deste Julgamento sairão ecos e avisos para uma cidadania mais activa. Desde já é de louvar a intervenção de jurados com o correspectivo reforço de responsabilização comunitária. Todavia, a cidadania começa não no interior de um tugúrio ou de uma sinistra garagem, mas sim nos lares e nas famílias. Quando estas não são vigilantes é então necessário o alerta de outras «cidadanias»... mas, no fim a questão é sempre esta: «who watches the watchmen»?

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