- Saia se faz favor! Vá lá, já lhe dissemos, saia daqui! Lá para fora! Vá lá!
Estávamos, uma freguesia inteira, à porta da igreja do Sr. Santo Cristo, para acompanhar os nossos romeiros. Quase todos viramos a cabeça à procura daquele acto de expulsão. Uma freira, vestida de hábito cinzento, expulsava, de uma forma frágil mas firme, da porta da igreja, uma pedinte.
A pedinte, uma mulher suja, gasta, escurecida pela exposição ao frio e ao sol, queimada da vida, abusada de carências e excessos, surpreendeu-me, pois pareceu-me desprevenida e envergonhada por ser o centro de uma nova plateia. Houve um momento de hesitação em que ela passou os olhos, envergonhados, assustados, esperançados, pelos olhos das almas presentes, inclusive os meus, e em que individualmente pareceu pedir ajuda, um conselho ou uma estratégia... algo. Quase todos desviamos o olhar, mas eu, sem a olhar nos olhos, pelo canto do meu olho, fiquei atento. Lembrei-me do Miura de Miguel Torga, da sua ilusão, da sua solidão perante a multidão, da sua coragem para aceitar o desfecho final.
Na certeza de que o público a abandonara em palco, ela ainda decidiu fazer, com a sua face inerte e olho vivo, o papel de Churchil e, mesmo que sozinha, stand her ground, só por um instante, longo bastante para lhe dar orgulho em mais esta derrota. Reparei que quando a freira deixou de a empurrar, e já toda a freguesia se concentrava na procissão de homens cansados, que choravam ave marias debaixo de uma chuvinha que lentamente molhava, a pedinte desceu o degrau e afastou-se, um bocadinho, da porta que dava entrada para o Sr. Santo Cristo dos Milagres, e ali ficou, debaixo daquela chuvinha que, à custa de avé marias, lavava a alma dos outros.
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