quinta-feira, março 19

Grande Eastwood

...


...
Gran Torino é nome de um dos mais emblemáticos carros desportivos produzidos pela Ford. Numa palavra é a América sobre rodas, no melhor estilo do início da década de 70, quando Nixon ainda estava no poder e a grande crise petrolífera de 73/74 era ainda uma miragem. Nesses anos um carro musculado, com um motor V8, era a epítome da virilidade. Também o era Clint Eastwood e a personagem Dirty Harry que nascia, em 1971, com o filme "A Fúria da Razão". "So…do you feel lucky, Punk? Make my day !", era a frase emblemática de Dirty Harry, antecipando o veredicto, que executava por mãos próprias, quando os criminosos ousavam arriscar. Inelutavelmente Clint Eastwood ficou marcado com o rótulo de impenitente reaccionário e, no índex da crítica cinematográfica, representava o "fascismo medieval". O facto de ser de Direita, e apoiante activo do Partido Republicano, ajudou a cimentar essa aura "infame" de reaccionário. Numa época em que estava na moda a ideia de que "era proibido proibir" Clint cometia a heresia de apontar uma magnum 44 em nome da lei e da ordem. Eastwood, numa carreira longa e variada, mergulhou repetidamente na violência fundacional dos USA cujo ferro deixou feridas permanentes na cultura Americana. Regressou em 2008 com duas obras memoráveis e fora do catálogo para a estatueta de melhor filme do ano. Além de "Changeling" (uma obra-prima), assina um dos mais Eastwoodianos filmes da sua carreira: "Gran Torino". É um filme derradeiro com a promessa do próprio de ser o último que conta com Clint Eastwood como actor. Nesta magistral despedida, Eastwood transpõe o western para a selva suburbana, numa América descaracterizada pela guerrilha latente entre diversos grupos étnicos. Acossado num bairro outrora integralmente branco, a personagem de Eastwood vive num melting pot que não é compatível com as mitomanias da fraternidade inter-racial. Em "Gran Torino" Clint é um working class hero de Detroit, tão ultrapassado e arrumado num canto como o Ford GT que tem na sua garagem. É um Eastwood áspero como lixa. Um homem crepuscular e incapaz de se redimir até perante o padre católico da sua congregação a quem, aliás, renega o poder redentor das escrituras. Porém, encontra redenção maior no sacrifício em nome da integridade e da amizade pela qual se deixa crucificar num gran final, que se julga terminal até ao momento em que Clint Eastwood partilha com Jamie Cullum a canção que segue o ritmo da mais comovente ficha técnica de sempre da história do cinema! No lugar do tradicional "lonesome cowboy" desliza em direcção ao horizonte um "Gran Torino" conduzido por uma personagem inverosímil. Dirty Harry é também redimido numa das mais notáveis caricaturas geriátricas de um herói que fez o seu tempo. Clint Eastwood convida-nos mais uma vez para uma experiência cinematográfica que exige uma reflexão emocional, nunca racional, sobre a dimensão humana a cujo género pertencemos. Mais do que actor ou realizador oscarizado, Eastwood é um grande autor.

João Nuno Almeida e Sousa nas crónicasdigitais do jornaldiario.com

Sem comentários: