Não querendo vir para aqui chover no molhado, parece-me importante, agora que os principais esclarecimentos já estão feitos, (por carta aos sócios da Quercus e em breve na comunicação social), discutir duas matérias de fundo sobre participação cívica e ambiente.
Comecemos pelo problema da participação dos cidadãos na vida pública e a dicotomia sociedade civil e partidos políticos. A voz corrente é de que os partidos políticos são uma entidade nefasta e obscura que controla os destinos das pessoas e que, por outro lado, as organizações da dita sociedade civil são formas de contra poder, impolutas, isentas e sempre do lado da verdade. No meu entender estes dois juízos estão profundamente errados. Os partidos políticos são antes de mais uma manifestação da sociedade civil, fazem parte integrante dela, são feitos de pessoas e regem-se por regras e princípios como qualquer outra organização. É claro que estão sujeitos a manipulações por parte de interesses, sejam eles individuais ou colectivos, tal como está qualquer outra organização. Pressupor, numa visão maniqueísta, que de um lado está a razão e do outro a raiz de todos os males é minar a sustentabilidade do próprio sistema democrático. A lógica dos pesos e contra-pesos só pode funcionar se for em movimentos pendulares e sem preconceitos moralistas sobre a actuação de cada uma das partes. Umas vezes são os partidos que tem razão, outras serão os organismos da sociedade civil e vice-versa.
Aqui entra a questão da participação individual dos cidadãos. A militância em todas as suas vertentes, seja ela num partido politico, numa organização corporativa ou numa associação ambientalista. Creio que todos estamos de acordo que não deve haver limites à participação dos cidadãos, ou se calhar não, alguns há que têm uma visão da sociedade em que deve haver compartimentos estanques com barreiras à actuação de cada um. Se na esfera estrita da militância político-partidária, por imperativos ideológicos, isso pode ser assim. Já no campo da participação cívica tal parece-me absolutamente absurdo. Os únicos limites à participação dos cidadãos devem estar no âmbito do bom senso e do bom gosto, para citar o bom Antero. Ou, posto de outra maneira, na capacidade individual de perceber quando determinados interesses são ou não conflituantes e a capacidade para justificar o contrário. A única exigência aceitável é a frontalidade e a transparência de cada um em afirmar ao que vem em cada situação, seja num partido, numa organização ambientalista, ou numa Câmara do Comercio.
A imposição interna de restrições à participação nas organizações é um erro, porque deturpa o princípio das liberdades individuais. Para além de que parte de uma visão distorcida da realidade e de um pressuposto de que os indivíduos não são livres de pensar e agir de acordo com a sua consciência. Cabe ao foro individual de cada um decidir, conforme as circunstâncias de cada caso, o âmbito e alcance da sua intervenção cívica e político-partidária. Mesmo em cargos de liderança ou de cunho executivo. Esta é precisamente a questão. As formas de participação e o cunho ideológico ou mesmo partidário que cada cidadão dá à sua actuação cívica marcam a sua personalidade pública e a visão que os outros terão dele. Tantos e tantos políticos que foram eleitos precisamente pelas convicções, preocupações e participações cívicas que demonstraram. O único requisito será o da transparência das decisões e o velho amigo bom senso e bom gosto.
No caso concreto do ambiente quer-se fazer crer que uma organização ambientalista é uma espécie de polícia da acção executiva e que para fazer parte dessa guerrilha é preciso usar uma t-shirt do Che, um keffieh e ser vegetariano… Ser ambientalista é ser o acusador de tudo o que os esbirros do poder fazem, até quando espirram. Não deixa de me surpreender que até conhecidos monárquicos tenham caído nesta visão passionaria que uma certa esquerda folclórica criou do verdadeiro ambientalista. Também tenho a minha velhinha t-shirt do subcomandante Marcos e posso ir vesti-la para discutirmos este assunto, mas o que eu quero aqui dizer é que as causas ambientalistas não são património de ninguém, nem mesmo dos próprios ambientalistas. E conceber um mundo em que para se ser ambientalista não se pode ser mais nada é ceder a uma visão maniqueísta e deturpada da realidade. E já nem vou outra vez ao argumento de numa comunidade pequena ser impossível ter um polícia para cada causa.
O centro da questão está numa visão da sociedade em que nem o poder está isolado num castelo, nem as organizações da sociedade civil estão acantonadas na floresta, como guerrilheiros rebeldes, à espera de um momento para atacar. A dinâmica democrática deve, ou deveria, ser de permanente diálogo e comunicação entre as partes, sendo que dessa dinâmica deviam surgir as melhores soluções para o avanço da sociedade.
Durante quase uma década fui sócio da Quercus, neste momento deixarei de o ser, não por qualquer tipo de mágoa ou ressentimento, mas apenas porque – e invertendo o aforismo do irmão Groucho Marx – não quero ser sócio de um clube que não me quer a mim como membro.
Por último e porque é de ambiente que se trata, gostava de chamar a vossa atenção para uma incongruência profunda que penso atravessa os movimentos ambientalistas na região. Nos últimos tempos fizeram um enorme alarido com a questão da Fajã do Calhau, utilizando-a isoladamente como símbolo de todos os males. Algo semelhante está a acontecer com uma petição sobre a Sorte de Varas, ou mais recentemente com um movimento mais estético do que ambiental contra um projecto na Praia dos Moinhos. Todos estes movimentos, descoordenados e mais ou menos esotéricos, pecam por uma incapacidade de ver ou atacar a verdadeira raiz dos problemas, que está não nas questões em si, mas no planeamento ou falta dele da acção governativa. Já antes chamei aqui à atenção para a inaceitável intervenção promovida na Fajã do Araújo e na praia do Lombo Gordo, esse crime ambiental, da responsabilidade da autarquia do Nordeste mereceu dos ditos movimentos ambientalistas o absoluto esquecimento. Fico com a sensação que para os puros do ambientalismo açoriano um crime só o é pelo tamanho ou visibilidade da ferida. Já para não falar nas SCUTS ou na brevemente inaugurada "avenida" da Dra. Berta. No caso dos Touros choca-me que se parta para uma guerra entre pontos de vista, mais por preconceitos de classe e de cultura, do que puramente por motivos ambientais ou de defesa dos direitos dos animais, é que não vejo os mesmos activistas a levantarem uma pena que seja contra os crimes denunciados pela RTP-A no tratamento e abate de vitelos nos matadouros regionais. Quanto à Praia dos Moinhos, pelo que vejo querem discutir arquitectura e não ambiente, e mais uma vez seria bom que os intervenientes tivessem tão claras as suas filiações e militâncias partidárias como eu tenho as minhas. Mas tudo isto não passa de ambientalismos.
Faja do Araujo
Faja do Araujo e Lombo Gordo
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