domingo, abril 24

OS ANIVERSÁRIOS DA LIBERDADE


Salvador Dali - Paysage aux Papillons



«Abril é o mais cruel dos meses, gerando
lilases na terra morta, misturando
A memória e o desejo, atiçando
Raízes inertes com a chuva da primavera»


T.S.Eliot, A Terra Sem Vida


ABRIL, 1974. LISBOA

Para nós Portugueses, Abril é muito mais do que um simples mês do ano. A palavra adquiriu na língua Portuguesa contemporânea uma singular amplitude polissémica que, estranhamente, não é sublinhada no recente Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Abril significa liberdade e configura também uma qualidade - abrilista - associada a sentimentos democráticos e revolucionários. Dito isto, escolher para epígrafe do presente texto os versos de Eliot e não os de Ary dos Santos, destacar lilases em vez de cravos vermelhos, poderá ser politicamente incorrecto, mas é o que apetece fazer perante a sacralização oficial da efeméride: ver as coisas de outro ângulo.

Estou à vontade para assumir esta posição, porque nunca fui um saudosista do Estado Novo. A expectativa de ir para à guerra colonial assombrou a minha primeira adolescência e pulei de alegria naquela manhã de 25 de Abril de 1974 quando, chegado ao liceu no autocarro 38, soube pelos colegas que não havia aulas porque os militares estavam na rua. Tinha 20 escudos no bolso e decidi gastá-los na compra de cigarros para oferecer aos soldados. Deu para 4 maços de «Ritz», que distribui entre os oficiais milicianos junto à capela do Rato. Estava-lhes muito grato e ainda hoje estou, mas depois da recente litania abrilista em que subiram ao palco tantos ilusionistas da memória, já é tempo de chamar as coisas pelo seu nome.

O 25 de Abril de 1974 assinala o início da III República em Portugal. No calendário político do actual regime, trata-se de uma data compreensivelmente proeminente e fundacional, mas daí a considerá-la a «mãe de todas as coisas» - da liberdade, da democracia, do desenvolvimento, numa palavra, da modernidade - já me parece ser maior passo do que a perna. Dir-se-ia que o Portugal contemporâneo só tem trinta anos de idade quando, em boa verdade histórica, já caminha para os dois séculos de existência. Os políticos da III República, que sofrem de miopia intelectual, ignoram este facto mas, todos eles se armam em professores de História nos aniversários do 25 de Abril. Este ano até resolveram chamar um historiador para assumir as funções de Comissário das Comemorações mas, pelos vistos, nem isso serviu para alargar o compasso da reflexão histórica, pois o grande debate centrou-se sobre a travestização da Revolução, que saiu à rua maquilhada com a cosmética da Evolução. Não irei falar da célebre rasura do «R» de Revolução, sobre a qual tão ilustres penas da nação já escreveram o que havia a dizer, mas gostaria de abrir uma outra janela sobre o debate, a janela dos Açores sobre o passado longínquo do século XIX.


JUNHO , 1832. PONTA DELGADA.

A ilha de São Miguel viveu dias de frenesim revolucionário na Primavera de 1832. Ao largo do porto de Ponta Delgada, habitualmente coalhado de navios mercantes, viam-se os vasos de guerra da esquadra de D. Pedro IV que, como é sabido, reuniu nos Açores o dinheiro e as espingardas que abririam o caminho à implantação definitiva do Liberalismo em Portugal. Antes de soltar amarras rumo ao Porto a 27 de Junho, D. Pedro passou revista às tropas em São Gonçalo, nos arrabaldes de Ponta Delgada. Embora ninguém tenha registado por escrito as palavras da sua arenga aos soldados, sabe-se de fonte seguras que aí foram gritados Vivas à Carta (Constitucional) e à Liberdade. Mais tarde, a 2 de Janeiro de 1833, em pleno cerco do Porto, quando a conquista das liberdades se fazia com sangue e a tiros de canhão, D. Pedro escreve à Câmara de Ponta Delgada recomendando «a construção de uma Alameda no belo sítio de São Gonçalo(...)para perpetuar a memória da (sua) estada nessa ilha(...) e para fazer lembrar aos vindouros o quanto o seu Governo interessou à Nação Portuguesa».

Provavelmente porque os micaelenses queriam era ouvir falar da construção de Docas e não de arranjos urbanísticos, sucessivas vereações camarárias fizeram orelhas moucas à sugestão do Libertador e, até hoje, se exceptuarmos uma discreta placa toponímica à entrada do Relvão, a projectada Alameda ainda se encontra por construir. É obra.

Entre os 7.500 «bravos do Mindelo» que marcharam no Relvão, encontravam-se outro tipo de «jovens capitães», com patente de soldado. Alguns deles eram nomes conhecidos, como Alexandre Herculano e Almeida Garrett, outros nem tanto, caso dos milhares de açorianos que depois acompanharam a expedição liberal.

Em 1901,quando D.Carlos, de visita à ilha, inaugura uma exposição no campo do Relvão, ainda cumprimentará um desses açorianos que combateram no cerco do Porto sob as ordens do seu bisavô, D. Pedro. A imprensa que fez a cobertura da visita régia destaca o pitoresco do encontro, porém nem sequer se dá ao trabalho de identificar o velho combatente. Era, no sentido literal e metafórico do termo, um soldado desconhecido. De resto, nos dias que correm, o próprio evento revolucionário que esse homem simbolizava já se vai tornando, ele próprio, desconhecido de todos nós.

A ilha Terceira poderá ser muito dada a festas e a touros, mas, pelo menos, possui uma Memória. São Miguel, que também contribuiu com a sua quota para a conquista da liberdade, que viu nela depois nascer alguns dos homens que mais marcaram a nossa modernidade oitocentista - Antero de Quental, referência histórica do socialismo e Teófilo Braga, o grande ideólogo do republicanismo - teria todas as razões para erigir um monumento semelhante no campo do Relvão. Um memorial à Liberdade e às sucessivas gerações que por ela lutaram para que os pais, filhos e netos do 25 de Abril compreendessem o verdadeiro sentido das palavras de Cícero: «somos apenas anões aos ombros de gigantes.».


Post-Scriptum Além disso, se me é permitido o alvitre á Dr.ª Berta Cabral, teria esta vereação camarária de Ponta Delgada uma excelente oportunidade para acertar as suas contas com a história.
Carlos Guilherme Riley, na Aula Magna do Açoriano Oriental de 3 de Maio de 2004.

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(N.E.: Esta sublime lição de História e delicioso naco de prosa deu origem a penosas conversações e negociações que mais tarde vieram a redundar na contratação deste «ponta de lança» para reforço do nosso blog. Neste caso, orgulho-me de ter sido o «manager» deste blogonegócio pois, como já se sabia, o Carlos Riley é uma das penas mais insignes da nossa praça.)

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