Em Dicionário do Diabo, o escritor americano Ambrose Bierce, descreveu a política como sendo uma luta de interesses disfarçada de disputa por princípios. O Devil’s Dictionary foi publicado pela primeira vez no início do século passado. 100 anos depois tenho a tentação de reformular o aforismo e postular que: a política é uma luta entre indivíduos desprovidos de ideologia.
Em vésperas de eleições para a Assembleia Legislativa Regional dos Açores o arquipélago está envolto num manto mais nublado do que a bruma meteorológica, o manto da campanha eleitoral, um verdadeiro cúmulos-nimbos de propaganda, folclore, aliciamento e, pasme-se, candidatos únicos.
Apesar de os círculos uninominais serem interditos pela Constituição, quem olhe para a campanha em curso não se aperceberá do facto. Por todo o lado surgem efígies dos líderes, dos “cabeças de lista”, acompanhados de slogans que os sublimam, como se de autênticos ícones se tratassem. Andando pelas estradas olhando os cartazes pareceria que o intuito das eleições seria eleger “líderes” e não um parlamento. Todos nos querem convencer que o número não conta mas que a identidade é tudo.
Finalmente tudo são personalidades. Eis que a totalidade é “o” candidato e que a candidatura se resume ao mesmo, esse mesmo, o “cabeça de lista”. Passados os quinze minutos de fama “warholiana” por fim o tempo da figura impar, única, inigualavelmente individual. Tudo é figura. Míseros trinta anos depois da instauração desta democracia, vivemos nisto – um cenário eleitoral feito de “cabeças de lista”. Revolucionamos o país do Salazar único para cairmos na democracia dos candidatos únicos. Falhou educar nas escolas o conceito das listas de deputados, dos mandatários do povo, essa chatice dos círculos eleitorais e dos representantes no parlamento. Falhou a democracia? Sim, falhou a democracia participativa. A democracia do pobre do voto, essa está de saúde. Vamos eleger 57, mas querem que escolhamos apenas 1.
Todos os partidos candidatos a estas eleições, todos sem excepção, impingem forçadamente ao eleitor a imagem e o perfil dos seus líderes, como se estes fossem a única bandeira desta campanha. Desde o PS, partido de governo, maioritário, com maiores responsabilidades, até ao PSD, partido com intenção de oposição e obrigação de alternativa, passando por todos os outros, ditos pequenos, exemplos de alternância, ou até, simplesmente, da diferença de ideias, todos eles se alapam aos seus líderes, com carisma ou sem carisma, numa esperança fútil de eleição.
Zuraida, Pires, Moniz, Lima, Estêvão, Ventura e até mesmo Neves e César, toda a campanha é centralizada no temperamento dos “cabeças de lista”. Ao ponto de dos pequenos partidos recebermos cartazes com slogans directamente relacionados com a vontade de eleição de um e só um candidato. Estas eleições vieram provar que vivemos, infelizmente, num tempo sem ideologias. A campanha é esvaziada de programa, de ideias, de propostas governativas e tudo se baseia na imagem do líder. O PS existe apenas na sombra de Carlos Cesar e este, num assomo inconcebível de demagogia eleitoralista, sustenta-se na vaga indefinível do orgulho autonomista. Ser socialista é um nada, o tudo é ser-se açoriano. O partido é transformado numa nau de uma vela só. O PSD, escuda-se em Costa Neves que, como um cavaleiro da triste figura, enfrenta moinhos até que algo ou alguém o reveze, o resto da lista é remetido a pano de fundo, indefinido, sem lastro. Ser social-democrata é ser sem chama, sem programa, sem querer, é ser a demanda de uma liderança que há-de vir. Chegando mesmo ao cúmulo anedótico de Berta Cabral desautorizar publicamente o próprio líder na cerimónia de entrega da lista por São Miguel. A prova última de que só lá está para fazer figura. E, talvez pior do que tudo, nos pequeníssimos partidos, que não teriam nada a perder, a febre ou a cobiça da compensação, fê-los apostar mais no individualismo das lideranças do que nas propostas, nos programas, nas ideias de futuro, na ideologia e na esperança de governo.
Que o PS é Cesar e que Costa Neves não é sequer o PSD já todos o sabíamos, mas que do PPM ao BE tudo fosse apenas as caras dos seus líderes, não é mais do que um triste serviço à democracia. Dos pequenos se exigia que fossem alternativa, já que não podem ou não conseguem ser diferentes, que tivessem listas de candidatos em lugar de convencimentos gastos. Enquistados nas suas próprias vaidades os partidos candidatos a estas eleições destruíram uma oportunidade de fazer democracia, farão uma maioria e um parlamento de dois partidos. Se a crise não nos destruir a todos, daqui a quatro anos haverá outra oportunidade.
publicado também em RTP/RDP-Açores
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