quinta-feira, outubro 2

À beira do abismo?

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Dorothea Lange
Migrant Mother; Nipomo, California 1936
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Será a actual crise financeira, com epicentro nos Estados Unidos, o fim do capitalismo? A pergunta é retórica pois, ao contrário da habitual cartilha dos órfãos do marxismo, a actual turbulência só pode ser resolvida pelo próprio capital. A crise é de rentabilidade mas, neste mundo globalizado, perdem não só os accionistas e os trabalhadores das mega corporações falidas como também perdemos todos nós, designadamente, com a subida generalizada das taxas de juro.

Mas os profetas do apocalipse do capitalismo falham o alvo pois a suposta falência do sistema mais do que económica é moral. Foi a ganância e a despersonalização que decorre da irresponsabilidade pessoal dos senhores do capital que, com a conivência do Estado, motivaram a actual reacção em cadeia na crise financeira. Há falta de moral e de valores neste capitalismo. Contudo, desde que se distribuam entre nós dividendos e bem-estar toleram-se todos os meios que o capitalismo usa para atingir os nossos fins de prosperidade. Dito de outro modo, o Ocidente, e a sua maior economia à cabeça, há muito que perdeu a fibra moral, pelo que, a perda de músculo financeiro é inevitável. Só assim se explica transigir em termos puramente mercantis com a China que, nunca é tarde lembrar, é uma ditadura comunista, uma campeã da pena de morte por delitos de vária ordem, um país torcionário dos mais elementares direitos humanos e, mais recentemente, um perigoso foco de atentados à saúde dos consumidores Ocidentais. Como bem sintetizava Miguel Castelo Branco, no indispensável blog Combustões, hoje "os negócios não têm cara. O dinheiro não tem vergonha. A vergonha já não tem preço".

Assim, num mercado livre sem vergonha, a almofada financeira que se pede dos governos para aparar a queda do capitalismo soa a batota. As regras do jogo são conhecidas de todos, e para a sobrevivência do próprio capitalismo é essencial o menor intervencionismo estatal nos mercados de risco. Porém, no cerne deste modelo liberal, levado à hipérbole nos Estados Unidos, há agora a perspectiva da mão visível do Estado ao serviço de um mercado de capitais imoral. Com a crise do subprime a vítima foi novamente a classe média apanhada entre empréstimos, para os quais não tinha estofo financeiro, e o aumento das taxas de juro. Como uma desgraça nunca vem só a esta "conjuntura" juntou-se a perda de valor do mercado imobiliário e uma "inflação" desmesurada do crédito mal parado. Nos Estados Unidos esta crise já se adivinhava junto dos gigantes do crédito hipotecário e, manda a justiça que se reconheça, era já uma bandeira do programa eleitoral de Obama que previa já a necessidade de serem implementadas medidas para atalhar à crise do imobiliário hipotecado. Com a falência de impérios do crédito hipotecário, como sucedeu com a Fannie Mae e Freddie Mac, a administração Bush tomou o controlo das empresas falidas injectando nas mesmas "ziliões" de dólares. Como se isto já não fosse perverso quanto baste os gestores das empresas em colapso saíram mais ricos do que quando entraram e vão receber ainda de bónus salários faraónicos do Tesouro norte-americano! Este prémio ser-lhe-á pago à conta do processo de transição das sociedades falidas para as mãos do Estado que, imagine-se, vai comprar as acções das mesmas pagando-as a peso de ouro sem correspondência com o seu valor real! Não há pois moral nesta economia nem muito menos neste modelo de liderança política.

Ora, política sem ética é uma vergonha que urge atalhar sob pena sermos todos escravos do vil metal. Pela deontologia da vida pública esteve em alta nos mercados da política Barack Obama quando impôs condições de ordem moral ao plano de salvação nacional da economia americana. No essencial: os responsáveis que paguem a crise, ou seja, que não haverá empréstimos a fundo perdido para as empresas falidas, que nem um cêntimo destes dinheiros públicos sirva, a título de indemnização, para benefício dos responsáveis máximos das empresas falidas, e que se crie um programa Nacional que reequilibre a crise do subprime com bonificações, ou subvenções, que permitam às pessoas manterem os seus lares. Há pois que injectar moral num modelo capitalista com o mínimo intervencionismo estatal, mas com firme fortalecimento das entidades reguladoras, para que não seja novamente a classe média chamada a pagar a crise. A alternativa é o abismo. Quando os cidadãos iniciarem a corrida aos depósitos bancários, para salvarem as suas economias debaixo do colchão, é sinal de que estamos já à beira do precipício.
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João Nuno Almeida e Sousa nas crónicas digitais do jornaldiário.com

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