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Assumindo o risco e com o devido respeito pela figura incomparável de Roosevelt, começarei por citar Kennedy, que, perante o Parlamento do Canadá, afirmou que “a Geografia nos tornou vizinhos, a História fez de nós amigos, a Economia parceiros e a necessidade aliados”.
O que JFK disse do Canadá poderia, com toda a propriedade, ser aplicado ao caso português e, mais particularmente, ao caso do relacionamento entre os Estados Unidos e os Açores, ainda que vizinhos mais afastados.
Quanto à Geografia, os dados são óbvios. Portugal projecta-se no Atlântico através das suas duas regiões autónomas, desde logo fisicamente: de Lisboa à Madeira, a Sul, distam cerca de 900 km; de Lisboa aos Açores, um pouco menos de 1500, a que teremos de juntar outros 600 se tivermos como ponto de referência a ilha das Flores. Unindo geometricamente os pontos, e mesmo entrando em conta com as águas e o espaço aéreo internacional de permeio, verificamos muito claramente que não é a longa costa atlântica do continente português que determina a vocação euro-atlântica de Portugal e que dá profundidade de campo às aspirações de interlocutor privilegiado para o diálogo euro-americano que o nosso país sempre assumiu.
A História também não deixa grande margem de especulação. Da colonização do Havai às páginas de Melville e de “Moby Dick”, dos tempos de Billy the Kid à corrida ao ouro da Califórnia, do primeiro posto consular da América livre – sedeado nesta cidade onde hoje nos encontramos – às significativas correntes migratórias que fizeram com que residam nos Estados Unidos pelo menos três vezes mais pessoas de origem açoriana do que os cerca de 245 mil habitantes que a Região tem presentemente – muitos são os exemplos que ilustram, com clareza, um passado interligado, forjado em necessidades mas também em afectos, numa comunhão de sonhos e de conquistas.
Este tipo de relacionamento histórico não tem paralelo noutros pontos do país e não pode ser esquecido, quando se analisa o estado presente ou o futuro do relacionamento bilateral, porque faz parte dos rudimentos da vocação transatlântica portuguesa.
Da História também reza a parceria formal – de que muito e bem já se falou ao longo deste fórum – concretizada nos diversos acordos de concessão de facilidades militares, primeiro em Santa Maria e depois na ilha Terceira, e que ainda hoje assumem particular importância enquanto fonte de legitimidade e elemento definidor do peso específico da projecção externa de Portugal.
(...) Esta característica geo-estratégica reforçada historicamente é simultaneamente estrutural, na sua essência, e conjuntural, na sua parecença. Depende do que é – é certo - mas também do que parece, ou se quisermos adoptar um tom mais realista, do que se faz parecer.
Sendo peça essencial da engrenagem que sustenta a actuação diplomática e negocial de Portugal enquanto Estado de vocação Atlântica, os Açores são também interlocutores directos no diálogo transatlântico, na medida em que têm estado tradicionalmente de costas para o Ártico e de frente para Sul, o que lhes permite olhar, de forma articulada, para as duas margens do Atlântico.
Esta vocação assumida encontra aliás eco na moldura constitucional vigente e na própria configuração do sistema autonómico tal como o conhecemos presentemente. A cooperação transatlântica no quadro da autonomia constitucional e da actuação dos órgãos de Governo próprio da Região – se me permitirem este enfoque regionalista – assume, pois, um carácter particular que importa destacar.
Neste assunto, mais do que em qualquer outro (mesmo se considerarmos as matérias comunitárias), os Açores conferem uma dimensão externa à sua acção política, participando directamente num processo diplomático e negocial entre Estados soberanos. Estamos, portanto, perante aquilo a que eu chamaria (consciente do risco de doutrinar em seara alheia) uma “diplomacia a dois tempos”, em que uma Região, dotada de autonomia política e inserida num Estado unitário, a propósito de um relacionamento internacional, negoceia, num primeiro tempo, com o Estado onde está inserida e, num segundo tempo, com o Estado parceiro, no quadro das posições previamente definidas a nível nacional. Trata-se, assim, de um processo, de certo modo, singular e - posso dizê-lo com conhecimento de causa – bastante exigente.
Também o Acordo de Cooperação e Defesa entre Portugal e os Estados Unidos, assinado em 1995 e ainda em vigor, reconhece o carácter particular da relação entre a Região e os Estados Unidos, no contexto bilateral, ao consagrar o conceito de “cooperação específica” com os Açores e ao enumerar áreas potenciais de materialização dessa vontade expressa. Paralelamente, o Acordo contempla a presença e participação de representantes da Região nas várias estruturas especializadas e no órgão de cúpula de acompanhamento da sua execução e, mais recentemente e por proposta dos Açores, passou a incluir igualmente uma Subcomissão exclusivamente dedicada às questões relacionadas com a cooperação específica.
Há, portanto, por diversas vias e com diferentes fundamentações, motivos de sobra para considerarmos elementar o reconhecimento do carácter determinante do arquipélago na valorização de Portugal no plano externo.
A questão que se poderá colocar, contudo, é outra e diz respeito à forma como, ao longo dos anos, tem Portugal assumido e concretizado o seu crédito atlantista e o potencial de projecção que lhe confere o território distante e fragmentado destas ilhas. Como está implícito na pergunta, estamos perante uma questão de opções - intermutáveis, coexistentes ou concorrenciais, mas sempre opções.
Apesar do dinamismo próprio e galopante das Relações Internacionais fazer oscilar, quase a cada instante, o equilíbrio de forças e o desenho de prioridades da acção externa dos países, Portugal tem optado nas últimas três décadas – de forma legítima, obviamente – pelo desígnio europeu e pelo enquadramento da relação bilateral com os Estados Unidos em espaços de diálogo e cooperação de carácter multilateral, como a União Europeia ou a NATO.
Mais do que interlocutor directo com o outro lado do Atlântico, assumindo uma linha diplomática autónoma, ainda que coordenada e paralela às outras vertentes e imperativos da sua actuação externa, Portugal tem sido sobretudo um intermediário euro-americano, fazendo depender, muitas vezes, o seu posicionamento sobre questões fundamentais de um equilíbrio aritmético ao nível dos meios e em detrimento dos fins. Simbolicamente e apenas como exemplo ilustrativo, permitam-me que destaque o facto da agenda da recente presidência portuguesa da União Europeia não ter incluído um evento de alto nível de cariz transatlântico, semelhante talvez à Cimeira Europa/África oportunamente realizada em Lisboa.
Por outro lado, a história recente demonstra-nos igualmente um certo pendor para o reforço da importância da componente Defesa do Acordo (e mesmo dentro desta, num sudomínio muito específico), em detrimento da componente Cooperação, que, do meu ponto de vista, encerra um potencial estratégico e temático muito mais alargado e muito mais adaptável à evolução própria dos contextos de aplicação do Acordo, em proveito próprio de Portugal e em benefício dos Açores.
O mundo hoje é outro em relação à aos tempos de Roosevelt e da luta pelo domínio das rotas atlânticas, mas também é outro em relação a 1995; as opções estratégicas no quadro da política de Defesa dos Estados Unidos são diversas; o paradigma do relacionamento internacional está em profunda mudança e os principais focos de conflito à escala mundial são pelo domínio dos meios e não pelo domínio por si só.
Neste cenário, os Açores são o ponto de encontro ideal, de gestação e concretização de um verdadeiro eixo transatlântico de cooperação, em matéria de Defesa e Segurança, com noutras matérias de importância ascencional e hoje determinante, nos domínios das Ciências do Mar, da Terra e do Ar, no campo da observação meteorológica, em áreas científicas ligadas às novas tecnologias da comunicação e informação ou às ciências bio-médicas ou ainda no sector das energias renováveis, em nome da nossa história partilhada e do nosso futuro comum.
Não convém, porém, esquecer as palavras avisadas do Embaixador americano em Lisboa, em plena II Guerra Mundial, R. Henry Norweb, que escreveu, em despacho para Washington e depois de relatar as complexas e difíceis negociações que tinha mantido com o Governo português, que – e termino, citando - “… e ainda temos de enfrentar a habitual propensão dos portugueses para regatear sobre os pormenores”.
Síntese do texto lido no painel "Portugal e os Açores nas Relações Transatlânticas", do I Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, 17 de Julho 2008, Teatro Micaelense, P. Delgada
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