terça-feira, março 14

Orgulho e Preconceito

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Recentemente fiquei estarrecido com o jaez de uma polémica peça jornalística, emitida pela RDP-Açores, na qual se diagnosticava «O Estado de Alma da Ilha Terceira», concluindo pela depressão colectiva dos Terceirenses, tendo como epicentro etiológico a ilha de São Miguel. A obra em causa, da pena do jornalista Armando Mendes, destilava um bairrismo serôdio que julgava estar já extinto. Confesso que a estupefacção com o calibre da "reportagem" foi de tal ordem que achei prudente parar a viatura que vinha conduzindo, e só depois de devidamente estacionado e em segurança, degluti na íntegra, e sem legendas, mais um naco de ressabiamento à moda da Terceira. Com efeito, ouvir tais dislates e conduzir ao mesmo tempo constitui uma façanha temerária com maior perigosidade rodoviária do que conduzir e concomitantemente fazer uso do telemóvel.

No essencial a controversa peça radiofónica, que de boa fé gosto de pensar que se aproxima mais da ficção do que do jornalismo de investigação, foi montada por meia dúzia de fidalgos da intelectualidade local. A pontuar as asserções que tais luminárias Terceirenses iam debitando emergiam as indispensáveis vozes de populares, fidelíssimos como cães de rabo torto, que devidamente adestrados alardeavam a amargura de viverem sob o jugo de São Miguel! Em pleno Sec. XXI, e do lado de cá, é caso para ficarmos siderados com tanto orgulho parolo guarnecido com um preconceito que roça o ridículo. Efectivamente, volvidos trinta anos sobre a nossa Autonomia parece que em alguns redutos do nosso território ainda não alcançamos a coesão política, apesar de para os mesmos territórios estar já prometida a inclusão na coesão económica e parques temáticos para a preservação da cultura autóctone.

O certo é que estas "vozes da rádio", coadjuvadas pelo cântico défroquée de Cunha de Oliveira e seus acólitos, vivem sob o credo de que o pecado original da nossa Autonomia está no facto de Ponta Delgada acolher a sede do Governo Regional. Porém, tão insignes e sapientes criaturas parecem esquecer que São Miguel em geral, e Ponta Delgada, em particular, também possuem os seus pergaminhos Autonómicos e que estes só por si bastariam para justificar a honra de acolhermos a capital política do arquipélago. Ademais, no lustro desses pergaminhos está subjacente uma laboriosa gente cuja grei fez de São Miguel o núcleo dinamizador da economia Regional. Com efeito, especialmente a partir do Sec. XIX, uma empreendedora gesta de empresários e burgueses de São Miguel fundou os alicerces societários da economia Açoriana. Banca e seguradoras, transportes aéreos e marítimos, indústrias de lacticínios, de chá e de açúcar, de tabaco, cervejas e refrigerantes, hotelaria e construção civil, cooperativas e associações agrícolas, tudo isto e muito mais se fez em São Miguel com projecção Regional, o que sempre justificou que o nome comercial de tais empreendimentos recorrentemente fizesse uso da palavra Açores.

Porém, ao arrepio desta dimensão «arquipelágica», ainda há quem ouse afirmar que os dividendos do projecto Autonómico têm sido iniquamente distribuídos com manifesto favorecimento para São Miguel. Contudo, os mesmos subscritores de tal libelo acusatório esquecem convenientemente a real dimensão do seu aporte para o capital social da nossa Autonomia.

Como se ainda fosse necessário reafirmar o pecado original da nossa Autonomia nunca esteve em São Miguel. Todos o sabemos, incluindo aqueles que afirmam o inverso a troco de algum tempo de antena e de alguma efémera distinção cuja esfera de influência deveria quedar-se nas cercanias do Ilhéu das Cabras. Todos o sabemos, incluindo aqueles que apontam baterias a São Miguel, que o "mal de vivre" da Terceira só pode ser imputável aos próprios Terceirenses. Contudo, o "lobby" da camarilha de Armando Mendes, Cunha de Oliveira e quejandos, vai alimentando uma determinada classe de Terceirenses que, quando não andam entretidos a lançar farpas aos Micaelenses, vão urdindo com orgulho e preconceito a secessão bairrista, designadamente, entre Angra do Heroísmo e a Praia da Vitória. Este é que é o mal que os consome.
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JNAS na Edição de 14 de Março do Jornal dos Açores.
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posted by João Nuno Almeida e Sousa

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