segunda-feira, outubro 31

«Halloween» versus «Dia de Finados»



Jorge Luis Borges, no cimetière des Rois
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No Século X a Igreja Católica formalizou o culto do Dia de Finados celebrando todos os que morreram e não são mais lembrados. Esse dia no calendário Católico, e desde o Sec. XIII, transitou para o 2º dia do mês de Novembro, já que o 1º dia do mês era consagrado ao Dia de Todos os Santos destinado a celebrar todos os que morreram em estado de graça e não foram canonizados. Contudo, a prática moderna, sem cuidar de julgar o estado de graça dos finados, tem vindo a nivelar todos os que partiram nas memórias que se evocam a 1 de Novembro. Recordando entre eles João Paulo II, esta união espiritual da saudade deveria ser também a ponte para «uma peregrinação espiritual, principalmente aonde se encontram sepultadas as vítimas da violência e da guerra, da injustiça e da fome».

Porém, estas palavras são cada vez mais ridicularizadas por uma sociedade materializada e insensível. O certo é que, independentemente da fé de cada um, no nosso calendário o feriado de 1 de Novembro convida-nos a reflectir sobre a nossa condição, daqueles que nos precederam e dos que nos hão-de sobreviver. A nossa condição, apesar da vida que engendramos, é a de simples mortais. Ainda assim diversos credos e religiões veneram o mistério da vida eterna pois «Ser imortal é insignificante; com excepção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal». Quem o disse foi o imortal Jorge Luís Borges cujo corpo descansa em Genéve, no cimetiére des Rois, sob uma lápide lacónica que por isso mesmo nos lembra o seu longínquo poema «Inscrição em qualquer sepulcro»:

«Que o mármore temerário não arrisque
ruidosas transgressões ao poder do esquecimento,
enumerando com prolixidade
o nome, a opinião, os factos, a pátria.
Tantos enfeites pertencem às trevas
E que o mármore não diga o que calam os homens.
O essencial da vida fenecida
-a trémula esperança, o milagre implacável da dor e o assombro do gozo?
irá perdurar sempre.

Às cegas reclama duração a alma arbitrária
quando a tem assegurada em vidas alheias,
quando tu próprio és o espelho e a réplica
dos que não atingiram o teu tempo
e outros serão (e são) a tua imortalidade na terra.»


Mas, numa sociedade que glorifica o culto do efémero a morte é um tema de mau gosto e um tabu ao qual se quer passar ao largo. A sátira deste costume foi já feita com «Sete Palmos Abaixo de Terra», uma brilhante série televisiva que narra as desventuras de uma família atípica de «undertakers». Na verdade, neste nosso mundo cada vez mais globalizado há também lugar para «contemporaneizar» a morte, sendo disso exemplo o culto do Halloween em vésperas de Dia de Todos os Santos e Dia de Finados. Nos dias que correm a concorrência mercantil do Halloween quase que nos faz esquecer o significado do milenar feriado de 1 de Novembro. São aproximadamente mil anos de celebração da fé na ressurreição, e do culto da fertilidade da vida, que são obliterados pela veneração consumista de bruxas folgazonas, abóboras iluminadas, e petizes mascarados de Harry Potter. Nada de novo numa sociedade que tolera, e até aceita com boçal desrespeito pela nossa memória, o lançamento dos livros de aventuras de Potter no Panteão Nacional ou nas ruínas do Convento do Carmo !

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JNAS na Edição de 1 de Novembro do Jornal dos Açores

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