"Qual foi a coisa mais corajosa que já fizeste? Ele cuspiu para a estrada, um escarro sanguinolento. Foi levantar-me esta manhã."
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Monument Valley by Brian Smith
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"E então puseram-se os dois a caminhar no asfalto sob a luz metálica, cinzento-azulada, a arrastar os pés na cinza, e cada qual era o mundo inteiro do outro."
Assim se resume um livro negro. Um road book numa estrada sem saída. Um livro calcinado que é também uma pérola da literatura contemporânea. "A Estrada" de Cormac McCarthy, prémio pulitzer da ficção literária em 2007, é indubitavelmente uma obra-prima e como tal é um livro arrebatador. Tributária do medo instalado após o 11 de Setembro esta novela, de Cormac McCarthy, é uma visão de um American nightmare em ruptura com os mitos do American dream. "A Estrada" é assim o retrato de um mundo cauterizado por um apocalipse cuja natureza nunca nos é revelada. Nesse mundo em ruínas os sobreviventes vegetam numa espécie de Inverno nuclear. São homens condenados a uma existência resumida a revolverem cinzas em busca de água, comida enlatada, cobertores e calçado.
Consequentemente, "o mundo não tardaria a ser povoado, em grande medida, por homens capazes de devorar os filhos diante dos pais e as cidades em si estavam nas mãos de grupos de saqueadores enegrecidos que escavavam túneis e emergiam do entulho a rastejar, de dentes e olhos alvejantes, carregando às costas redes de nylon a abarrotar de latas calcinadas e anónimas, quais clientes às compras nos armazéns do inferno". Neste cenário cruel não há solidariedade entre os homens e estes degradam-se ao ponto do canibalismo.
O que sobra então? O amor e o desespero de um pai na "estrada" tentando resgatar o filho desse mundo cujo bestiário está de permanente atalaia. Esta é a linha de enredo que nos oprime e estilhaça da primeira à última página do livro. "Deus não existe e nós somos os seus profetas" é uma das lições do manual de sobrevivência das personagens sem nome que nesse mundo, estéril e moribundo, se fazem à estrada. Contudo, o que nos agarra também à narrativa destes destroços é a resiliência paterna em legar valores morais ao filho na presunção de que este sobreviverá. Ambos são andarilhos andrajosos numa inominada estrada Americana rumo ao Sul, na busca de Invernos menos rigorosos, nas cercanias de um oceano que não sabem se ainda existe. São verdadeiros sem-abrigo num mundo teluricamente selvagem.
Um grandioso American nightmare percorrido por duas personagens sem nome. Pai e filho arrastando-se nas cinzas Americanas e arrastando consigo um carrinho de supermercado com os víveres indispensáveis à sobrevivência. Num certo sentido "A Estrada" envolve-nos num cenário de uma brutalidade que nos evoca uma versão gore dos westerns em formato de Mad Max. Em suma: o livro é uma epopeia desesperada pela sobrevivência sem concessões ao sentimentalismo delicodoce. "A Estrada" é uma obra de ficção que numa parábola actual, pós 11 de Setembro, soa a sermão messiânico sinalizando o que temos a perder. Essa é que é a moral da história.
A insuspeita review literária do Guardian arrumou Cormac McCarthy numa tradição literária Americana que é "gótica, reaccionária, niilista, abertamente religiosa, sulista e fundamentalmente rural". É impossível não venerar este homem.
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"A Estrada" numa Edição da Relógio de Água está disponível na Bertrand. "O meridiano de sangue", romance do mesmo autor, igualmente publicado pela Relógio de Água, está também disponível na Livraria Bertrand de Ponta Delgada.
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posted by João Nuno Almeida e Sousa
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