terça-feira, fevereiro 7

O «Bilhete de Identidade» de :



Li finalmente o best-seller da mais recente celebridade da «inteligentsia» e ícone do feminismo Português. Foi com um misto de agrado e desilusão que cheguei à última página do «Bilhete de Identidade» de Maria Filomena Mónica. Paradoxalmente a biografia de uma intelectual, devidamente encartada com o selo de garantia catedrático, é também o retrato típico de uma mulher enclausurada e ressentida com a sua condição feminina. Mas o certo é que nas palavras de Maria Filomena Mónica «um homem não podia ter escrito o que escrevi, pela simples razão de não ter vivido o que vivi»! Também aqui se aplicará, com a necessária correcção, o axioma de Ortega Y Gasset : «a mulher é a mulher e a sua circunstância.».

Mas, com justiça se dirá que o livro tem o mérito de percorrer, numa perspectiva familiar, a «circunstância» da mulher Portuguesa no Sec. XX. Ademais, a vitória de Maria Filomena Mónica sobre a sua «circunstância» feminina é um acerto de contas com o estereótipo que lhe estava reservado à nascença. O background da condição feminina em Portugal era manifestamente desigualitário chegando, por exemplo, ao extremo de censurar-se à vulgar professora da primária a «exibição escandalosa de pinturas faciais». Inclusivamente a diminuição moral da mulher chegou a ser imposta por Decreto-lei quando, em 1936, o Ministério da Educação proibiu o uso da maquilhagem e de indumentária desadequada «à majestade do ministério exercido». Num passado próximo da catedrática Maria Filomena Mónica o Estado Novo condicionava o casamento das professoras a prévia autorização ministerial, concedida apenas aos esponsais que demonstrassem bom comportamento moral e civil ! Eram outros tempos, pautados pela ordem da domesticação da mulher, onde, será escusado dizer, nem sequer teria lugar a fantasia do casamento lésbico que hoje merece os holofotes da imprensa Nacional.

Naqueles tempos de verdadeira coacção, cívica e moral, e até ao final da década de 60, qualquer mulher Portuguesa, maior de idade e casada, só poderia viajar obtendo passaporte com autorização do marido, e deste também dependia o consentimento expresso para ser empresária em nome individual ou até para abrir uma corriqueira conta bancária. Nessa ordem de diminuição das faculdades básicas de qualquer cidadão também o direito ao voto (- uma farsa numa ditadura -) estava reservado às mulheres que fossem chefes de família e possuíssem curso médio ou superior. Tudo isto eram reminiscências de uma pátria que na propaganda da escola primária ensinava: «Na família, o chefe é o pai e na Nação o chefe é o governo».

Nas suas memórias, Maria Filomena Mónica, evoca a viragem dessa ordem letárgica imposta por um Estado tão forte que não precisava de ser violento, com a recordação do artigo «Carta a uma Jovem Portuguesa», impresso na edição de 1961, da revista Via Latina. À data lia-se na polémica carta o seguinte petardo panfletário lançado por um homem a uma mulher: «A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro, alto e espesso, que nem tu nem eu construímos. A nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós nos favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da repressão moral.». Hoje esse muro já não existe. Foi derrubado pela geração de Maria Filomena Mónica. Mas o «Bilhete de Identidade» dessa geração é ainda a catarse de muitas Marias sexagenárias.

Seja como for o livro lê-se com deleite pela curiosidade em visitar um passado já extinto. Contudo, apesar da elegância da prosa, a comezinha mentalidade do portuguesinho, mesmo que medianamente letrado, é acicatada pelo voyeurismo das revelações de alcova que o livro sugere. Esta espécie de Big Brother retrospectivo e literário teve, por exemplo, mais impacto do que a descrição social de um país em que a miséria era tão omnipresente que se tinha tornado invisível. Essa miséria não se esgotava na escassez material, porquanto, ia mais longe medrando na indigência das mentalidades e dos costumes. Contudo, em pleno Sec. XXI, Maria Filomena Mónica, após sessenta anos de vida intensa e a propósito da publicação da memória desses anos, confessou recentemente no seu Diário: «A certa altura, chegaram-me aos ouvidos rumores da curiosidade que a minha vida sentimental estava a suscitar no meio académico masculino. Alguns colegas doutorados, de quem eu esperava outra coisa, andavam, pelos corredores, a comentar as supostas peripécias picantes....A seus olhos, eu mais não era do que uma boneca insuflável.». Por certo a autora de «Bilhete de Identidade» não percebeu que um cavalheiro, mesmo que tivesse vivido o que ela viveu, nunca teria escrito o que ela escreveu !
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JNAS na Edição de 7 de Fevereiro do Jornal dos Açores....
(post-scriptum : na senda da pluma caprichosa vou atirar-me aos «Cisnes Selvagens» de Jung Chang e de permeio vou revisitar com «Raiva e Orgulho» a Oriana Fallaci...)
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posted by João Nuno Almeida e Sousa

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