domingo, junho 5

RELVÃO: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

O topónimo "Relvão" surge com alguma frequência nos Açores e designa, por regra, uma zona chã sem coberto lenhoso e atapetada de erva. As características orográficas deste tipo de terreno transformaram-no muitas vezes em campo de treino militar, como foi o caso do Relvão de Angra do Heroísmo, situado entre o perímetro fortificado do Monte Brasil e o calhau da Silveira, ou ainda o Relvão de Ponta Delgada, contíguo ao Cemitério de St. George e implantado a noroeste do Alto da Mãe de Deus, na coroa periurbana da cidade oitocentista.

Em qualquer um dos "Relvões" o Exército Liberal reunido por D. Pedro IV levou a cabo exercícios militares quando aqui esteve estacionado em 1832, mas foi no de Ponta Delgada que a memória desses acontecimentos ficou gravada no espaço, quanto mais não seja porque o topónimo "Relvão" (talvez por arrastamento ou analogia com o de Angra) se sobrepôs à primitiva designação - "Campo dos Dízimos" - pela qual era conhecido esse arrabalde da cidade micaelense até à primeira metade do século XIX.

Apetecia-me entrar em floreados retóricos sobre as botas cardadas que pisaram aquele chão e o nome dos homens que as calçavam - Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Luz Soriano, Mouzinho da Silveira e tantos outros - mas a forma mais eloquente de despertar a atenção dos leitores para o significado do local é evocar os milhares de recrutas açorianos, alguns deles de pé descalço, que dali marcharam a 23 de Junho de 1832 para o célebre desembarque na praia do Mindelo que, como é sabido, antecedeu a tomada do Porto e a subsequente implantação definitiva do Liberalismo em Portugal.

Ironia da História, o nome pelo qual ficaram conhecidos estes homens -"Os Bravos do Mindelo"- sublinha apenas a importância da praia de desembarque e não o porto de partida. A nossa memória colectiva reteve igualmente quantos foram esses bravos - 7500, números redondos - mas quase ninguém faz a mais pálida ideia de que parte significativa da tropa rasa, aquela que habitualmente apanha com a primeira salva de tiros, eram homens destas ilhas. Passe o anacronismo, dir-se-ia que o contributo açoriano para o "25 de Abril" do século XIX é um detalhe aparentemente despiciendo da nossa História Contemporânea, o que aliás não admira se tivermos em consideração a forma madrasta como os portugueses quase sempre desvalorizaram a sua própria Revolução Liberal. Triste mania esta, que nos consome desde os tempos de Antero de Quental: falar mal dos pais fundadores do Liberalismo, apesar de terem sido eles que nos deram a liberdade de falar.

Vou adiantar uma prova singela: quase todos conhecemos a "pérfida" figura do Duque de Ávila, porque este proibiu as Conferências do Casino em 1871, mas alguém sabe que esse mesmo António José de Ávila foi quem arregimentou em 1832, enquanto Presidente da Câmara da Horta, os contingentes faialenses que iriam integrar o exército de D. Pedro IV? Ou alguém cura de saber que o morgado Fernando Quental, pai de Antero, foi um dos Bravos do Mindelo?

Bem, o que é facto é que a moda dos Liberais mal amados pegou de estaca e propagou-se como fogo em pradaria seca ao longo de todo o século XX português. Os "Teófilos" da 1ª República viram no Liberalismo um sinónimo odioso do Constitucionalismo Monárquico. O Prof. Salazar e os integralistas da 2ª República associavam-no à ideia, para eles muito pouco simpática, de liberdade libertina. E o nosso actual regime político, o da 3ª República, parece rever-se em conjunto na biografia política do Dr. Soares, para quem a mãe de todas as coisas é o laicismo republicano da Revolução de 1910.

Por todo este conjunto de razões, o desprezo a que se encontra votado o Relvão até acaba por ser natural. Mas há um pormenor que torna o silêncio do esquecimento ainda mais ensurdecedor: D. Pedro IV, em pleno cerco do Porto, escreveu à Câmara de Ponta Delgada uma recomendação: a de que fosse projectada nesse campo uma Alameda ou Passeio Público que perpetuasse a memória dos que de lá partiram. Desde os idos de 1833, quando a carta foi escrita, que essa recomendação caiu em saco roto e tanto assim foi que Aristides Moreira da Mota, nas vésperas da Visita Régia de D. Carlos e D. Amélia aos Açores em 1901, confidenciava ao seu amigo Luís de Magalhães a seguinte proposta:

"(...) Para o Rei, pensa no que te vou dizer. Como sabes foi nesta ilha que se organizou definitivamente a expedição dos 7.500 bravos e justamente formaram eles, antes de embarcarem para o Mindelo, nos terrenos onde se vai realizar a Exposição. Sabes também que são datados desta cidade os célebres Decretos de Mouzinho, que operaram na legislação a revolução liberal. Pois bem, não há aqui um único monumento que recorde aqueles factos sobre os quais se tem desenvolvido toda a história moderna do nosso país. Não é esse monumento devido?(...) Já fiz lançar esta ideia aqui no público, pela imprensa e pela nossa propaganda local. Tem tido uma excelente aceitação. Neste sentido escrevo ao Paçô e ao Mota Prego. Colabora com eles no que te for possível. É negócio em que todos os partidos devem pôr-se de acordo. O Rei, portanto, lançaria aqui a pedra central do monumento(...)".

Ora, não obstante este propósito do grande atleta da Autonomia, o monumento nunca viria a ser erguido, como qualquer cidadão poderá verificar ao passar pela Rua da Mãe de Deus e, já quase a fechar o século XX, no ano de 1998, a Câmara de Ponta Delgada, em conjunto com a Reitoria da Universidade dos Açores, procurou promover a reabilitação do Relvão mas, por razões que desconheço, o projecto nunca chegou a sair da gaveta. Ou muito me engano, ou a razão deste impasse prende-se de alguma forma com o campo de jogos Marquês Jácome Correia. A única boa notícia é que tudo ainda permanece em aberto, pelo que seria desejável reinterpretar as preocupações urbanísticas e comemorativas de D. Pedro IV à luz do que é hoje Ponta Delgada, transformando a reabilitação do Relvão num plano de pormenor que envolvesse também o Observatório Afonso Chaves, o Cemitério dos Ingleses e o Alto da Mãe de Deus, criando-se assim um circuito urbano e museológico de cariz predominantemente oitocentista que tarda em aparecer nesta cidade.

Património não nos falta, faltam-lhe é as legendas. E também falta, por vezes, um bocadinho mais de respeito por aquilo que já fomos. Se porventura esse respeito sair muito caro, sugiro de imediato uma alternativa barata: ao lado da placa que, à entrada do Relvão, assinala estarmos defronte da "Alameda do Duque de Bragança", poderia colocar-se uma outra com o seguinte dizer de Jorge Luís Borges nela gravado:

"A memória e o esquecimento são igualmente significativos".

1 comentário:

Antero Leite disse...


O 'passar a esponja' sobre os acontecimentos 1820 - 1834 é uma constante entre nós. Não é apenas o Relvão olugar da memória esquecido. No Porto, temos a desprezada Praça da República onde se situa o Quartel de Santo Ovídio de onde partiu o movimento militar de 24 de Agosto de 1820.
Antero Leite