Entretanto, fartou-se de morrer gente. Pode parecer mórbido, mas adoro escrever obituários. Tenho imensa inveja do Embaixador José Cutileiro e daqueles seus In Memoriam no Expresso. Receio, contudo, entrar em contratempo depois da posta do JNAS sobre o Vasco Gonçalves e não me parece próprio estar para aqui a discorrer sobre o Álvaro Cunhal. Bom, mas já que estamos a falar de mortos, é caso para dizer: better red than dead.
Sobra, portanto, o Eugénio de Andrade. Que foi poeta, coisa simpática de se ser. Mas sou incapaz de lhe gravar aqui um epitáfio porque, embora respeitando imenso a sua escrita rigorosa e enxuta, nunca me entusiasmou muito aquilo em que ele foi verdadeiramente bom; a expressão lírica. De qualquer forma, é um grande senhor da Língua Portuguesa a menos e vou ter saudades do jeito que ele dava às palavras, do tricôt que lhes aplicava. Em sua homenagem, queria deixar um testemunho que porventura alguns acharão interessante. Há cerca de dois anos, fui de romaria à casa da Marguerite Yourcenar, que é num sítio encantador do Maine e, en passant, consultei o espólio da escritora que está depositado na Houghton Library, em Harvard. A Yourcenar tinha uma autêntica fobia a aviões e sempre que vinha à Europa receber um prémio literário, ou coisa do género, apanhava aqueles paquetes transatlânticos que escalavam o arquipélago nas décadas de 50-60. Lembrando-me do espantoso poema que o John Updike escreveu sobre os Açores nas mesmas circunstâncias, sem sair do upper deck do navio, resolvi vasculhar os carnets de voyage de Madame Yourcenar à procura de umas anotações suas sobre estas ilhas, mas depressa percebi que me ia faltar vagar para algo que deve ser feito com muita calma. Virei-me, então, para a correspondência e, na lista dos portugueses que se escreviam com a senhora, saltaram-me aos olhos os nomes de Maria Lamas e Eugénio de Andrade. Transcrevi uma boa mão cheia de cartas e trouxe o lápis comigo. Na Houghton, as canetas ficam à entrada e os assentos são em pele.
Espero que a Curadora da Divisão de Manuscritos não leve a mal, mas vou aqui publicar excertos da primeira carta que o poeta escreveu a Yourcenar, datada de 13 de Março de 1960, pouco depois de a ter conhecido pessoalmente no Porto, durante um jantar, quiçá de tripas. Acho que o Eugénio de Andrade, caso esteja por aí a cirandar na blogosfera, vai gostar de reler estas suas palavras. Ainda que em francês, falam de uma certa arte perdida de ser português.
Chére Madame
(...) Je pense, s'il y a une âme nationale, dans notre cas, il faut la chercher dans les poétes. Ce que de plus vivant (et vous m'avez dit que c'est cela qui vous interesse) il y a dans notre Moyen Age doit se trouver dans les "cantigas de amigo", les "Chroniques" de Fernão Lopes, et le "Théatre" de Gil Vicente.
Je vais écrire au fils du Professeur Joaquim de Carvalho pour qu'il me procure le court, mais dense, essai de son pére sur la "saudade", qui vous interessa certainement. Et j'ai déjá parlé à un ami, Dr. Óscar Lopes, pour qu'il m'aide dans l'élaboration de la liste des livres que vous m'avez demandée.
Je n'oublierai rien, car je n'oublierai jamais notre rencontre. Mon meilleur souvenir à votre amie, et la profonde sympathie
de Eugénio de Andrade
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