terça-feira, março 16

um ano, uma cimeira e uma Guerra depois


A 16 de Março de 2003 reuniram-se, na base das Lajes, 3 dos homens mais poderosos do Mundo. Objectivo? Avançar para - a Guerra no Iraque 2. A :ILHAS, nesse mesmo dia, decidia editar um n.º especial sobre este facto histórico. Posto aqui, um dos textos que compuseram esse número, também ele histórico, e que marcou um ponto de viragem na curta história da Revista. A escolha é aleatória mas não escondo que este foi um dos "meus" textos. Um abraço e muito Obrigado ao Joel e a todos os colaboradores desta e de outras :ILHAS.

O avião de Bush – uma crónica escrita no dia seguinte à cimeira por Joel Neto

A política já foi uma coisa admirável – hoje não o é. Quando domingo à tarde George W. Bush entrou na sala de conferência de Imprensa da cimeira das Lajes, ladeado por Durão Barroso, José Maria Aznar e Tony Blair, os jornalistas americanos levantaram-se em sinal de respeito e os portugueses não conseguiram conter o riso – não digo “eles, os jornalistas portugueses”, digo “nós”, eu incluído. Para todos os 120 repórteres presentes na sala (portugueses, americanos, ingleses, espanhóis e muitos outros), aquele encontro teria algo de brutal, algo de sério e sobretudo muito de encenado. Mas nós rimo-nos. Nós, os que supostamente lá estávamos em representação do povo português, aqueles a quem o povo português encarregara de trazer a notícia – nós rimo-nos do respeito que os jornalistas americanos, apesar de tudo, têm pelo símbolo nacional que é o seu presidente. E não foi anedótico. Não foi o nosso humor latino e estridente a tomar conta de uma sala. Rimo-nos porque não conseguimos conter o riso – o que é muito pior.

A política já foi uma coisa admirável e hoje está muito longe de o ser – e está tão longe de o ser para os jornalistas portugueses como provavelmente para o povo português, açorianos incluídos. Quando em 1971 Richard Nixon e Georges Pompidou se reuniram na ilha Terceira para a cimeira da desvalorização do dólar, milhares de pessoas encheram as ruas de Angra do Heroísmo para ver passar aqueles que só conheciam dos jornais – na altura não havia televisão no arquipélago. Este fim-de-semana, 32 anos depois, pouco mais de uma centena de cidadãos saiu à rua – e fê-lo para protestar contra uma guerra de que sabem tanto como da paz. Ninguém foi junto à Base das Lajes para mostrar a sua admiração pelo presidente americano – ou mesmo pelos primeiros-ministros do Reino Unido, Espanha e Portugal, três dos quatro países (falta a França) que historicamente mais diriam aos portugueses. Atenção: quando digo ninguém não quero dizer que foram dez ou vinte pessoas – quero dizer mesmo quase ninguém. Ao longo de todo o dia de domingo vi uma única senhora, esposa de um militar português das Lajes, a acenar para Bush. Mais nada. E a cimeira de domingo foi, provavelmente, o acontecimento político mais importante de toda a história dos Açores.

Quando a política era uma coisa admirável, havia pessoas que iam a uma grande cimeira internacional para mostrar a sua admiração pelos participantes – e então punham-se a olhar para os tiques humanos daqueles semi-deuses, a trocar com eles acenos ou apertos de mão que jamais esqueceriam, a jurar a si próprios que na próxima oportunidade (se um dia a houvesse) voltariam a aparecer. Se a política fosse uma coisa admirável as pessoas teriam ido domingo às Lajes, e se conseguissem ver alguma coisa haveriam de observar como Bush tem o ar pragmático de um rancheiro de sucesso, como Aznar é um meia-leca encarnadiço, como Tony Blair é provavelmente o mais charmoso de todos os grandes líderes mundiais. Teriam visto que Barroso chegou num avião pequenino, Aznar num avião maior, Blair num avião verdadeiramente grande e Bush num verdadeiro colosso dos céus – o mítico Air Force One –, exactamente à medida das respectivas importâncias no contexto mundial.

Mas não. A política já não é uma coisa admirável. Os homens votam naquele que lhe promete ir menos ao bolso. Os jovens votam naquele que lhe garante o melhor lugar no ministério. As crianças não sonham com o dia em que, finalmente, poderão votar. Não é que a História tenha acabado, como pretendia Fukuyama. A História continua, na verdade. Mas continua de uma maneira diferente, uma maneira em que a política deve sobretudo abster-se de chatear.

Ontem, na ilha Terceira, já ninguém falava no facto de Bush, Blair e Aznar terem passado por lá no dia anterior. O que as pessoas querem é que a guerra não lhes chegue à ilha – e o resto alguém proverá
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