Ou de como viver em democracia é saber aceitar que alguém como o Sr. Bush possa ser presidente da maior democracia do mundo.
Sou o género de leitor que lê até as letrinhas pequeninas da página três, os números do depósito legal, a morada da gráfica, o número de exemplares. Digo género sem saber se existem outros como eu, mas desconfio que sim. Gosto de livros ao ponto de não deixar uma página que seja sem uma olhadela. Gosto de lhes sentir o papel, o peso, o volume, quase como fazer festas nos livros como se fossem gatos de barriga para o ar. Enfim, são manias. Isto a propósito do novo livro de José Saramago que, como já devem ter percebido, ontem comprei. Ora confesso que tive dificuldade em passar da ficha técnica, aquele imenso número de 100 000 exemplares de tiragem na primeira edição deixou-me banzado. Mas depois de algum folhear de páginas, de espreitadelas enviesadas a algum do conteúdo, depois de ter lido um pouco do que se foi escrevendo por aí da matéria deste Ensaio Sobre a Lucidez, depois de não ter visto a entrevista que o autor deu a Judite de Sousa, depois de tudo o que conheço de Saramago, de Zeferino Coelho, do PC e do país que temos, tenho, para já, apenas um comentário a fazer: Não obstante uma leitura mais atenta parece-me que quando um autor por melhor ou pior que seja se dá a si a altivez de querer educar um país é obrigação de todos os que gostam da liberdade, já para não falar dos que gostam de Literatura, demonstrar, quanto mais não seja não comprando o livro, a esse autor que cada um tem o direito de pensar por si. Aquilo que o Sr. Saramago quer fazer com este manifesto político é de tal forma vil que não deve ser relativizado. A base do sistema democrático é o respeito pelas opiniões dos nossos opositores e dos nossos antagonistas, o Sr. Saramago ao passar um atestado de imbecilidade ao actual estado das coisas esquece que no dia em que não acreditarmos que este sistema mesmo sendo o pior de todos é ainda o melhor que já foi criado, no dia em que deixarmos de ter essa fé abrimos a porta a todo o tipo de ditaduras e subjugações, tanto de direita como de esquerda. Inundar desta forma o país com um panfleto ideológico, que poucos vão ler com atenção, mas de que todos vão formular e emitir opinião é um claríssimo acto de selvajaria política que deve ser exposto e criticado. Só há uma coisa que me irrita mais do que a intolerância da direita e essa coisa é a intolerância da esquerda. Eu por mim lutarei sempre pelo direito à abstenção e à indiferença, a democracia é isso mesmo, é dar às pessoas o direito de decidirem pelas suas cabeças, mesmo que isso signifique que ninguém se importa com nada e que se está tudo nas tintas para o governo das coisas. No dia em que começamos a culpar a democracia pelo estado do mundo é o dia em que a besta da opressão e do desgoverno ganha a primeira batalha. Vergonha, Sr. Saramago, vergonha.
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