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A Arte de ser Patrício
Nos tempos da Roma Republicana, patrício designava uma camada especial de habitantes da cidade que se distinguiam pela sua nobreza e pergaminhos familiares. Daí a palavra ter-se fixado na língua portuguesa como adjectivo, cujo lastro social nos leva frequentemente a associá-la à qualidade aristocrática. Não é este, contudo, o único sentido do termo, já que a sua raiz etimológica é a palavra patria, designativo locativo latino do sítio onde se nasceu. Assim, ser-se patrício de alguém traduz um sentimento de identidade colectiva que abrange, sem distinções de classe, sexo ou religião, todos aqueles que são da mesma terra. É nesta acepção mais democrática e geográfica da palavra que a evoco a propósito do livro Ponta Delgada: Vandalismo ou Desenvolvimento? pois o presente trabalho de Carlos Falcão Afonso é uma verdadeira declaração de amor à pátria, à pátria que o viu nascer em 1946 na freguesia de São Sebastião, o coração da velha cidade.
Permito-me vincar o ano de nascimento do autor porque essa marcação cronológica é importante para compreender o sentimento conservador que perpassa pela sua obra. Foi precisamente nos anos 40 que começaram a ocorrer intervenções arquitectónicas pontuais que prenunciavam já a grande alteração estrutural da morfologia urbana de Ponta Delgada na década seguinte, quando o aterro e construção da Avenida Marginal vem modificar profundamente o relacionamento da cidade com o mar que lhe estava fronteiro. Embora o discurso modernista e a preocupação com a funcionalidade e estética dos edifícios já tivesse conhecido alguns afloramentos na imprensa local- como, por exemplo, na tão interessante quanto ignorada entrevista feita por Manuel da Silva Carreiro ao escultor Ernesto Canto da Maia em 1925- só na década de 1950, por via da polémica gerada em torno dos edifícios projectados para a nova frente litoral de Ponta Delgada, é que o debate arquitectónico e urbanístico se tornou pela primeira vez um tópico de animada discussão pública, em grande parte protagonizada pelo Arquitecto João Correia Rebelo, cujo ponto culminante será a publicação em 1953 do manifesto intitulado NÃO .
A querela travada entre os Antigos e os Modernos acordou Ponta Delgada para a necessidade de preservar o seu património urbano, cuja identidade seria novamente posta em causa vinte anos mais tarde quando, na década de 1970, se levantou apaixonado debate em torno da chamada Torre da Avenida. Já depois do 25 de Abril, algumas decisões com profundo impacto no que restava da antiga morfologia litoral da cidade, designadamente o aterro da Calheta de Pêro de Teive, ajudaram a manter viva- quanto mais não seja -a consciência cívica de alguns relativamente ao património histórico que a sua cidade ia perdendo na marcha apressada do desenvolvimento urbano.
Carlos Falcão Afonso testemunhou desde a mais tenra infância todas estas demãos de tinta fresca que se foram aplicando sobre a cidade e, deplorando-as, propõe-nos aqui resgatar as cores originais da velha urbe. A forma como escolheu fazê-lo, compendiando informações e documentos fotográficos de grande valor, organizados ao longo dos três eixos estruturantes do casco histórico da cidade, resulta num trabalho notável de- se me é permitida a expressão -cerzideira que reconstitui as malhas caídas do tecido urbano. Hoje, mais do que nunca, a valorização do chão que pisamos deveria ser um imperativo moral, sob pena de não sermos dignos do direito de cidade e, nesse sentido, o presente livro é uma monografia histórica de indiscutível mérito e, para além disso, um verdadeiro manual de urbanidade e boas maneiras.
De tanto falar de História, não vá julgar-se que o médico-cirurgião Carlos Falcão Afonso é um historiador encartado, mas não restem dúvidas de que o seu trabalho se situa na esteira de outros contributos que, desde os alvores do século XX, diversos cidadãos prestantes sem qualquer formação científica na área da investigação histórica nos foram legando sobre a história de Ponta Delgada, tais como Aníbal Bicudo , Aires Jácome Correia , Luís Bernardo Leite Ataíde e José Bruno Tavares Carreiro , ao qual devemos a arte de ter entrelaçado a vida e morte de Antero na biografia da cidade.
Muito antes de haver Universidade nos Açores (1976) e até mesmo a montante da fundação do Instituto Cultural de Ponta Delgada em 1944, já esta cidade se conhecia muito bem a si própria graças a uma honrosa tradição de estudos locais que remonta ao século XIX e teve em Ernesto do Canto o seu símbolo mais luminoso. Do alto da nossa presciência contemporânea, falta-nos muitas vezes tempo para reconhecer aquilo que as gerações antecedentes arrotearam antes de cá chegarmos. Isto, por um lado, porque pelo outro, a progressiva profissionalização do ofício de historiador e o seu respectivo enquadramento universitário também ajudam, ainda que inconscientemente, a branquear os contributos que muitos daqueles a quem condescendentemente chamamos de carolas deram e continuam a dar à cultura histórica de Ponta Delgada. Na pessoa de Carlos Falcão Afonso, que aqui os representa, gostaria de lhes dizer: Obrigado.
Antes de terminar, não posso deixar de referir as circunstâncias em que surgiu este livro, pois também elas merecem a devida vénia. Tive o privilégio de ler e ver em primeira-mão o trabalho agora dado à estampa no Admirável Mundo Novo do ciberespaço, já que o seu autor, com a preciosa assistência técnica da filha, ia publicando regularmente um seriado de postais sobre Ponta Delgada no blogue (Indis)Pensáveis . A blogosfera é o mais amplo espaço de liberdade de expressão hoje existente e, por isso mesmo, encontramos lá de tudo, como na Botica. Entre outras coisas, podemos dar de caras com surpresas tão agradáveis como esta: alguém que, filho do seu tempo, soube utilizar essa prodigiosa ferramenta de edição que é o blogue em benefício da cidade, consagrando-o assim como instrumento de cidadania.
Que a actual vereação camarária de Ponta Delgada tenha tomado a iniciativa de passar a papel aquilo que, de outra forma, seria um graveto perdido na floresta da informação, é uma decisão que a honra a ela e enriquece a todos nós.
Carlos Falcão Afonso testemunhou desde a mais tenra infância todas estas demãos de tinta fresca que se foram aplicando sobre a cidade e, deplorando-as, propõe-nos aqui resgatar as cores originais da velha urbe. A forma como escolheu fazê-lo, compendiando informações e documentos fotográficos de grande valor, organizados ao longo dos três eixos estruturantes do casco histórico da cidade, resulta num trabalho notável de- se me é permitida a expressão -cerzideira que reconstitui as malhas caídas do tecido urbano. Hoje, mais do que nunca, a valorização do chão que pisamos deveria ser um imperativo moral, sob pena de não sermos dignos do direito de cidade e, nesse sentido, o presente livro é uma monografia histórica de indiscutível mérito e, para além disso, um verdadeiro manual de urbanidade e boas maneiras.
De tanto falar de História, não vá julgar-se que o médico-cirurgião Carlos Falcão Afonso é um historiador encartado, mas não restem dúvidas de que o seu trabalho se situa na esteira de outros contributos que, desde os alvores do século XX, diversos cidadãos prestantes sem qualquer formação científica na área da investigação histórica nos foram legando sobre a história de Ponta Delgada, tais como Aníbal Bicudo , Aires Jácome Correia , Luís Bernardo Leite Ataíde e José Bruno Tavares Carreiro , ao qual devemos a arte de ter entrelaçado a vida e morte de Antero na biografia da cidade.
Muito antes de haver Universidade nos Açores (1976) e até mesmo a montante da fundação do Instituto Cultural de Ponta Delgada em 1944, já esta cidade se conhecia muito bem a si própria graças a uma honrosa tradição de estudos locais que remonta ao século XIX e teve em Ernesto do Canto o seu símbolo mais luminoso. Do alto da nossa presciência contemporânea, falta-nos muitas vezes tempo para reconhecer aquilo que as gerações antecedentes arrotearam antes de cá chegarmos. Isto, por um lado, porque pelo outro, a progressiva profissionalização do ofício de historiador e o seu respectivo enquadramento universitário também ajudam, ainda que inconscientemente, a branquear os contributos que muitos daqueles a quem condescendentemente chamamos de carolas deram e continuam a dar à cultura histórica de Ponta Delgada. Na pessoa de Carlos Falcão Afonso, que aqui os representa, gostaria de lhes dizer: Obrigado.
Antes de terminar, não posso deixar de referir as circunstâncias em que surgiu este livro, pois também elas merecem a devida vénia. Tive o privilégio de ler e ver em primeira-mão o trabalho agora dado à estampa no Admirável Mundo Novo do ciberespaço, já que o seu autor, com a preciosa assistência técnica da filha, ia publicando regularmente um seriado de postais sobre Ponta Delgada no blogue (Indis)Pensáveis . A blogosfera é o mais amplo espaço de liberdade de expressão hoje existente e, por isso mesmo, encontramos lá de tudo, como na Botica. Entre outras coisas, podemos dar de caras com surpresas tão agradáveis como esta: alguém que, filho do seu tempo, soube utilizar essa prodigiosa ferramenta de edição que é o blogue em benefício da cidade, consagrando-o assim como instrumento de cidadania.
Que a actual vereação camarária de Ponta Delgada tenha tomado a iniciativa de passar a papel aquilo que, de outra forma, seria um graveto perdido na floresta da informação, é uma decisão que a honra a ela e enriquece a todos nós.
Carlos Guilherme Riley
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A Presidência da Câmara Municipal de Ponta Delgada, em parceria com a ANIMA Cultura, lança hoje pelas 21 horas e 30 minutos, no Centro Municipal de Cultura, a prestigiante obra "Ponta Delgada: Vandalismo ou Desenvolvimento?" do Dr. Carlos Falcão Afonso. Brevemente esta edição, patrocinada pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, estará numa Livraria perto de si.
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