domingo, julho 10

SWINGING LONDON



Sempre gostei muito de Londres. Mesmo à distância. Quando era miúdo, adoptei até uma equipa de futebol londrina, o West Ham United, capitaneada na altura pelo Bobby Moore. Os Hammers nunca me deram grandes alegrias - para essas estava lá o Benfica - mas tinham um equipamento invulgar e as crianças dão muita importância a essas coisas. Ao contrário de grande parte da geração de 70 do século XX, nunca li Sartre na adolescência e sempre me considerei culturalmente mais formatado pela "swinging London" do que pelo Maio de 68 em Paris. O Mick Jagger, devo confessá-lo, falava-me mais ao coração do que Georges Moustaki.

Depois do 25 de Abril, um dos membros da Junta de Salvação Nacional, o General Galvão de Melo, lançou uma blague que ficou célebre no anedotário político do país: "se eu tivesse 18 anos também era do MRPP". O homem lá tinha as suas razões, mas a ditadura do proletariado nunca fez parte da minha crise de crescimento e no Liceu que frequentei, um baluarte do maoísmo em Lisboa, os colegas politicamente esclarecidos catalogavam-me de pequeno burguês com comportamento desviantes, só porque preferia ouvir o David Bowie a ler os textos revolucionários de dois senhores alemães que, curiosamente, estão enterrados em Londres: Karl Marx e Friedrich Engels. A cartilha política da minha geração, mais Internacional menos Internacional, dizia que éramos todos filhos da Revolução Francesa, mas sempre me pareceu que alguma coisa se devia também aproveitar da monarquia parlamentar britânica, pois os ingleses não se dão mal com o sistema há imenso tempo, pelo menos desde 1660, quando a efémera revolução republicana de Oliver Cromwell entregou a alma ao criador.

A primeira vez que saí de Portugal, fi-lo de Inter Rail, uma espécie de passe ferroviário que nos permitia andar por (quase) toda a Europa durante um mês. Estávamos em 1976, os GNR ainda não tinham lançado o seu êxito discográfico "Portugal na CEE", e as autoridades nacionais, receando a fuga de divisas para o estrangeiro, controlavam na fronteira o dinheiro que cada um levava. Sete mil escudos eram o limite. Um exagero, evidentemente, sobretudo para quem só tinha quatro contos no bolso da mochila. Nessa altura o destino da moda era a Rive Gauche, mas demorei-me em Paris apenas o tempo estritamente necessário para mudar de estação. Atravessar a cidade-luz como uma toupeira, resumi-la ao trajecto de metropolitano entre Austerlitz e a Gare du Nord, é um pecado, eu sei, mas tinha pressa de chegar a Londres.

Apesar das pressas, viajava-se devagar. As barreiras geográficas, antes da construção do Túnel no Canal da Mancha, obrigaram-me a entrar em Inglaterra de barco e, durante a travessia de Boulogne-sur-Mer para Folkestone, lembrei-me do percurso inverso feito pelos Aliados quando desembarcaram nas praias da Normandia. Hoje em dia já ninguém se dá ao trabalho de pensar nisso, o que é pena, mas paciência. Aqui há uns meses atrás, lembro-me de ter lido no editorial do Economist que as companhias aéreas low cost deviam receber uma condecoração de Bruxelas pelo seu contributo para a integração europeia. Absolutamente de acordo, contudo, isto de apanhar um avião no Porto e aterrar em Oxford Street para fazer compras é muito engraçado e tal e coisa, mas ajuda bastante a não percebermos nada do sítio onde estamos. Em contrapartida, avistar os White Cliffs de Dover à chegada, obriga-nos a entender a Inglaterra tal como ela é, na sua condição insular, e a compreender porque é que sempre resistiu a todas as derivas hegemónicas protagonizadas pelas duas principais potências continentais europeias, a França napoleónica e a Alemanha do III Reich.

Londres soube levantar-se da devastação provocada pela blitzkrieg de Hitler e, ironia da História, foi nos túneis do metropolitano que os londrinos se puseram então a salvo do terrorismo de Estado. Aquilo que aconteceu no passado dia 7 de Julho é uma triste metáfora da barbárie contemporânea: o metropolitano foi um espaço de refúgio quando nem as Igrejas eram poupadas à cegueira das bombas, desta vez as bombas rebentaram com precisão cirúrgica nos próprios subterrâneos da decência humana. Aquela que explodiu à superfície, no autocarro nº 30 para Marble Arch, ao que tudo indica não atingiu o objectivo desejado: rebentar na estação de King's Cross onde o pandemónio se tinha entretanto instalado com as pessoas a fugirem da estação. É arrepiante pensar naquilo que podia ter acontecido caso o condutor do autocarro, um londrino de origem grega, não tivesse alterado o seu trajecto habitual. A bomba acabou por explodir em Tavistock Square, uma daquelas típicas pracetas londrinas com jardins bem estimados onde as pessoas vão ao fim do dia passear o cão. Onde as pessoas criam afecto pelos bancos de jardim ao ponto do nome delas lá ficar gravado, numa discreta placa, em sua memória depois de mortas.

Passei algumas horas sentado nesses bancos de madeira, deambulando pelas pracetas de Bloomsbury, o bairro londrino que Virgínia Wolf e o seu grupo tornaram célebre há um século atrás e que é hoje o coração universitário da cidade. Tavistock Square fica na extremidade norte desta zona e perto do sítio onde o autocarro explodiu, junto à sede da Associação Médica Britânica, morou durante algum tempo Charles Dickens, o autor de Hard Times e também Mahatma Gandhi, o inspirador do pacifismo, que aliás lá tem uma estátua erguida desde 1966.

Não sei o que Gandhi pensaria da explosão se estivesse sentado no banco de jardim. Eu, que estou para aqui ao computador, só estou certo de uma coisa - gosto muito de Londres, mesmo à distância.

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