Diz que Ponta Delgada fez anos ontem, quatrocentos e sessenta e um, mais precisamente. Diz que se deve dar os parabéns. Parabéns. Mas apesar da comemoração, perdoem-me este desabafo, não me parece que esta cidade tenha muito para celebrar. Sei de antemão que me vão acusar de partidarite ao fazer esta afirmação, mas quem quiser olhar para esta cidade sem os antolhos da cor partidária ou do interesse económico, só pode ver um burgo descaracterizado e desnorteado. Não vou apenas criticar a Câmara Municipal, ou sequer apenas a actual Câmara, quem quiser ler até ao fim verá que critico também os Governos do meu partido. Se historicamente Ponta Delgada não era já de si uma cidade de grande deslumbre, nos últimos quarenta a cinquenta anos uma sucessão de desvarios urbanísticos e políticos trataram de transformar Ponta Delgada naquilo que ela é hoje: um puzzle desconexo de grandes obras magnificentes mas deslocadas e infelizes. Não vou muito para trás, mas o primeiro crime data do tempo do Estado Novo, que só gostava de fazer obras de grande estadão, e tratou de dar cabo da relação da cidade com a sua frente de mar, construindo todo o conjunto da Avenida Infante D. Henrique e a Doca. Se a necessidade de um moderno Porto Comercial é indiscutível já a opção de localização e o conjunto majestático da avenida são altamente criticáveis. Depois o edifício Solmar, do qual nem vale a pena falar. Logo a seguir o prolongamento da avenida com o afogamento da Calheta de Pêro de Teive, continuado agora até aos extremos de São Roque, cobrindo todo o litoral de tetrapodes e betão. Mais para o interior o desvario urbanístico da construção em altura, num modelo habitacional já caduco em muitas partes do mundo, agravado com o abandono das freguesias limítrofes, com a ausência de planos de pormenor e de outros mecanismos de defesa das idiossincrasias próprias de cada uma destas freguesias. Ao longo dos anos, sucessivos executivos, têm abandonado a cidade à mercê dos interesses económicos e imobiliários, movidos apenas pela ambição dos resultados eleitorais. Hoje Ponta Delgada é uma cidade sem história, sem passado e sem rumo. Não se perspectiva uma ideia, um projecto para a cidade. Qual a relação desta com o mar e com o campo? Qual a relação da periferia com o centro? Que política para Ponta Delgada? O actual executivo camarário vive refém da sua sofreguidão de obras, apenas explicável pela pressão exercida pelas empresas construtoras e pelo apelo dos euros. A única acção deste executivo é adjudicar obras, sem que se vislumbre ou perceba a razão de tanto betão. Na data do seu aniversário são emblematicamente anunciados mais de 11 milhões de euros num Parque Urbano, com circuitos de manutenção e driving range. Isto num concelho e numa ilha onde qualquer cidadão tem à curta distância de dez minutos de carro a possibilidade de escolher entre uma enorme variedade de actividades de lazer ao ar livre. Isto também num concelho que não criou um único circuito pedestre, não promove as suas belezas naturais e betoniza a orla marítima. Faz sentido este Parque Urbano numa cidade como Ponta Delgada? Eu acho claramente que não, mas antes gastar dinheiro em verde do que em parques de estacionamento subterrâneos ao longo de toda a avenida marginal. E no mesmo dia ficamos a saber que um dos imóveis da cidade com mais história está à mercê dos interesses imobiliários, por incúria e desleixo dos responsáveis políticos, todos. Ponta Delgada está órfã de um projecto estruturante que a dignifique e engrandeça, em todos os âmbitos, do urbanismo à política social, da cultura ao desporto, do trânsito ao desenvolvimento económico. Ponta Delgada está órfã de um executivo camarário que licencia construção em altura e não defende o património, que aumenta as taxas e não protege o comércio tradicional, que se afunda em festivais mas não promove a cultura. E para agravar ainda mais tudo isto Ponta Delgada é mártir da guerra politica entre Governo e Autarquia. Fruto dessa constante batalha entre egos e ambições vão sendo cometidos, sem se assacar responsabilidades, sucessivos crimes nesta cidade. Só para dar um exemplo é incompreensível que numa cidade com a dimensão populacional de Ponta Delgada se tenha impulsivamente restaurado dois imóveis para os mesmos fins ou similares, sem que tenha havido um estudo, uma ponderação, um entendimento entre os poderes por forma a salvaguardar o património mas ao mesmo tempo em enquadrar esses investimentos com as reais necessidades da cidade e da sua população. Por causa disso temos hoje duas lindas salas, totalmente mal dimensionadas, mal apetrechadas e mal vocacionadas. Daqui a vinte anos, talvez menos, estaremos a ponderar o que fazer com elas e entretanto milhões de euros foram ai desbaratados. O Coliseu e o Teatro são o exemplo maior da irresponsabilidade dos nossos actuais governantes. E a loucura continua, de um lado as Portas do Mar, cuja justificação comercial e política é inqualificável face aos custos, do outro os planos megalómanos de estacionamentos subterrâneos e centrais de camionagem, cujos benefícios são claramente desproporcionais em função da ausência de reais planos viários para a cidade no seu todo. Enquanto houver euros haverá desperdícios. Mas a verdade é que as cidades são também feitas por quem as habita e, em última instância, quem é responsável pelo estado hoje da Ponta Delgada de 400 anos somos nós todos.
Every decent man is ashamed of the government he lives under.
H. L. Mencken
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