Texto publicado na edição de hoje do Açoriano Oriental. A versão alargada deste texto pode ser lida clicando aqui.
No referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez o que o Estado pede aos cidadãos é que digam Sim ou Não a uma questão concreta. Importa então perceber a pergunta. "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" O primeiro ponto a reflectir e o mais relevante é o da despenalização. De acordo com o actual código penal a IVG é legal em determinadas circunstâncias (em caso de risco de vida da mãe ou do feto, em caso de mal formação extrema e em casos de violação). No entanto, outros casos são considerados crime. Uma jovem adolescente de 16 anos, que está a descobrir a sua sexualidade, que procura chegar à vida adulta, que ainda não pode votar, é punida por decidir abortar. Uma mãe solteira de um filho, com fracos recursos económicos, que decide abortar, é crime. Um casal, com uma saudável vida em comum, com filhos, que faça um aborto, é punido. Um casal de namorados estudantes universitários, que não tem estabilidade emocional e financeira, que usa métodos contraceptivos, que decide abortar. É crime. É sobre isto que o Estado nos pede para votar, sobre estas pessoas. Devemos punir estas pessoas, ou não? Devemos punir quem, com as suas razões, faz um aborto? Devem estes casos, que são apenas exemplos paradigmáticos no meio de uma outra miríade de motivos que podem levar à dramática situação de abortar. Devem estas pessoas ser penalizadas por um Estado que as obriga a recorrer ao desmancho, à clínica de vão-de-escada, aos métodos inseguros, inumanos e selvagens a que hoje milhares de mulheres recorrem para pôr fim às suas gravidezes? Deve o Estado permitir essa estrema desigualdade social que tolera que apenas os detentores de poder económico possam recorrer a clínicas privadas, aqui ou no estrangeiro, e terminar uma gravidez? Ou devemos permitir que cada um escolha de acordo com a sua consciência? O que se pretende é introduzir na moldura penal mais uma excepção, às já existentes, permitindo assim que até às dez semanas e em estabelecimento de saúde autorizado o aborto por opção da mulher não seja punido. Neste ponto muitos querem fazer crer que se trata de liberalizar. Liberalizar é dar total liberdade. Parece-me claro que em face da pergunta que nos é posta pelo referendo não existe qualquer tipo de liberalização do aborto, antes pelo contrário, pressupõem-se sim limitações concretas e mais uma excepção ao regime já existente. Em segundo lugar, as dez semanas. Para tudo nas nossas vidas existem prazos, limites temporais. Uma idade para votar, um tempo para estudar outro para trabalhar. O limite temporal que aqui se pretende estabelecer é não só baseado nesta necessidade civilizacional de estabelecer regras mas, também, na avaliação concreta do problema do aborto. O prazo das dez semanas é medicamente aceite como o período de transição entre a fase embrionária e a fase fetal, período esse que levanta menos riscos para a mulher e em que o feto não é sensível a estímulos exteriores, permitindo uma ponderação da decisão por parte das pessoas envolvidas, médicos, pacientes e familiares. O terceiro ponto prende-se com a obrigatoriedade do procedimento ser feito em estabelecimento de saúde autorizado. Este é um ponto fundamental nesta questão, uma vez que haverá um controlo por parte do estado sobre as instituições que efectuarão a IVG, ao mesmo tempo que se incute na sociedade a ideia de que o Estado não faz uma avaliação moral sobre a questão do aborto e leva as pessoas a procurarem de forma aberta um acompanhamento médico podendo assim efectuar com toda a segurança e com total responsabilidade um procedimento que, pela sua natureza, assim o exige. Mais dois pontos fundamentais: o problema de saúde pública e a questão da "vida". O aborto clandestino é hoje, em Portugal, um gravíssimo problema de saúde pública. A realização de IVG sem acompanhamento médico coloca as mulheres em perigo extremo, com consequências físicas e psicológicas gravíssimas, lesões cervicais, a perfuração do útero ou intestinal, infecções, infertilidade, lesões permanentes, depressões graves e morte. A questão da "vida". A tentativa de definir o que é a vida existe desde que se criou a linguagem, sendo que se trata de uma das questões mais complexas e vastas do pensamento. Cada um de nós tem uma concepção sobre o que é para si a vida e quando é que ela surge. Uma concepção sempre individual e de acordo com a consciência de cada um. Ora a função do Estado é legislar de acordo com princípios gerais fora do âmbito da moralidade estrita de determinado credo ou concepção individual. O que está aqui em causa, no que à questão da vida diz respeito, é que se decidirmos que o embrião é já uma vida de pleno direito não é competência do Estado escolher sobre que vida tem mais valor, se a da mãe se a do embrião. Compete ao Estado permitir que seja cada um de nós, em consciência, a fazer essa escolha. O que este referendo nos pede é que digamos sim ou não à liberdade de cada cidadão fazer essa escolha.
É por isso que eu vou votar Sim no dia 11 de Fevereiro.
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