Fotografia Fernando Resendes |
Durante uma semana, em Ponta Delgada, os apreciadores das facções mais avançadas do jazz viram-se imersos num desafiante e arrojado programa de concertos diários. À partida, a aposta do festival era arriscada, ao convocar sobretudo projectos ligados às franjas mais livres e radicais do jazz. Com alguns concertos inesquecíveis, salas bem compostas e uma audiência verdadeiramente interessada, ficou clara a sensação de que a aposta havia sido ganha.
O arranque deu-se com o trio do lendário Charles Gayle, saxofonista negro que representou aqui as raízes mais clássicas do free jazz, com ligações ao gospel e aos blues. Gayle revelou uma forma notável, soprando livre, ágil e poderoso no saxofone tenor e surpreendendo como pianista, num registo espiritual, derivado de Monk, bastante mais amadurecido do que em gravações anteriores. Num concerto que demorou um pouco a aquecer para depois se instalar num nível altíssimo, o contrabaixista Larry Roland e, sobretudo, o baterista Michael Wimberly mantiveram um fogo contido, de grande vibração, destinado sobretudo a realçar o discurso notável de Gayle.
No segundo dia, apresentou-se no salão nobre do Teatro Micaelense o pianista norte-americano John Blum, a solo. Incompreendido e ignorado por muitos, verdadeiramente idolatrado por outros, Blum é um músico brilhante de difícil categorização. Num set de uma única peça improvisada, lançou-se sobre o teclado do piano com uma impressionante energia anímica, construindo um aparente caos de notas percurtidas, marteladas, afagadas, glissandos selvagens e cotoveladas brutais, num todo que tem tanto de pura intuição como de rigor musical. Discutível foi a utilização repetida das mesmas soluções rítmicas e harmónicas, em ciclos desenvolvidos de forma quase idêntica.
Robert Glasper, pianista que grava para a Blue Note um pós-bop algo incaracterístico, revelou ao vivo possuir uma requintada subtileza harmónica e um conceito rítmico vibrante, baseado na repetição hipnótica de motivos. Mais próximos da soul e do hip-hop do que do jazz (por momentos pareceu-nos ouvir a voz de Jill Scott), Glasper e os seus dois companheiros, Vicente Archer no contrabaixo e Mark Colenburg na bateria, demonstraram a sua fortíssima base académica e realizaram um interessante estudo jazz sobre a estrutura da canção popular.
Na noite de 31 foi a vez do trio e quinteto electroacústicos liderados pelo violinista Ernesto Rodrigues. Improvisador de grande nível e responsável por uma das mais importantes editoras europeias deste género musical (Creative Sources), Rodrigues fez-se aqui acompanhar por Carlos Santos, no computador e processamento electroacústico, e Guilherme Rodrigues, violoncelo, aos quais se juntaram posteriormente Gianna de Toni, contrabaixo, e Luís Couto, na guitarra eléctrica. Na segunda parte, em quinteto, a única a que me foi possível assistir, a música surgiu contraditória com o espaço (auditório principal), incapaz de transpor a barreira invisível do palco e comunicar a riqueza de detalhes que habitualmente integra. Uma estrutura demasiado horizontal e alguma falta de dinâmica acabaram por complicar ainda mais as coisas.
Telepático, o trio do saxofonista Evan Parker assinalou o ponto alto do festival. Acompanhado por John Edwards no contrabaixo (magistral) e Tony Marsh na bateria (colorista mais que ritmatista), Parker realizou um concerto notável onde foi possível perceber que se aproximou irreversivelmente do jazz. Longe das abstracções metafísicas que fizeram a sua glória em discos como Conic Sections, The Snake Decides ou London Air Lift, Parker é hoje um jazzmen, fraseando as linhas de free com excepcional clareza e agilidade e continuando a surpreender com secções onde utiliza a respiração contínua para actualizar o conceito de "lençóis de som" preconizado por Coltrane nos anos 60.
Finalmente, a encerrar o Festival, um dos momentos mais aguardados: o duo de Wadada Leo Smith e Louis Moholo-Moholo, duas lendas do jazz. No entanto, cedo se percebeu que Leo Smith estava num dia não, demasiado cansado para vencer a simples inércia dos movimentos físicos mais básicos. Apesar disso, Moholo depurou a sua linguagem, com ligação directa às raízes africanas do jazz, e aproximou-se da quase imobilidade de Leo Smith com um drumming encantatório que potenciou os ambientes altamente espirituais do trompetista. Acabou por se revelar a classe excepcional de ambos e a fragilidade de toda a música mais criativa, vulnerável por completo a pequenas oscilações de humor ou energia.
* Rodrigo Amado in Público de 6 Nov'10
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