terça-feira, fevereiro 24

Ler o Cinema

...

George Méliès "Voyage dans la lune" via Tate on line
...
O rótulo de Sétima Arte, que se agarrou ao Cinema como uma marca distintiva no panteão das artes, remonta a 1912 e foi obra de Ricciotto Canudo, um obscuro intelectual italiano com simpatias fascistas que, no início do Séc. XX, teve a premonição do nascimento de uma nova expressão artística que, de certa forma, sintetizava as precedentes. Seguramente que este Canudo já teria visto os fragmentos da pré-história do Cinema, como por exemplo, o documentário de Louis Lumière que filmou uma mole de operários no termo de um turno numa fábrica de Lyon, ou as fantasias de George Méliès que já em 1902 ambicionava uma "Voyage dans la lune" ! Todos sabemos que a génese do cinema remonta ao filme dos irmãos Lumiére - "La Sortie des ouvriers de l'usine Lumière" – que, em 1894, registavam em filme, de raiz documental, o final de um dia de trabalho.

Contudo, é George Méliès quem pela primeira vez empresta à técnica cinematográfica a aura de fantasia e arte que o Cinema adquiriu. Méliès fora convidado para uma prémiére do filme dos irmãos lumiére e porventura achou a fita insípida, mas o suporte tecnológico era fascinante e abria as portas para uma nova forma de expressão artística. Fantasia, Vanguarda e Experimentalismo eram as coordenadas pelas quais Méliès orientou a sua câmara.

Embora não seja possível registar com a precisão mecânica de um relojoeiro Suiço creio que as primeiras adaptações da literatura para o Cinema são de Méliès ( com uma filmografia com mais de 500 títulos ! ) que com "La Damnation de Faust" (1897) partia de uma ideia popular mas burilada na literatura por Goethe mas, em 1902, com uma clara inspiração nos livros de Júlio Verne, assinava o iconográfico "Le Voyage Dans la Lune". Porventura é esta a primeira adaptação cinematográfica de uma obra literária. É também de Méliès a patente dos primeiros efeitos especiais: em "Escamotage d'une dame au théâtre Robert Houdin" de (1896), Méliès parou a câmara e substituiu a actriz que se encontrava envolta num véu por um esqueleto e depois recomeçou a filmagem. Voilá...com este truc d'arrêt estava criado o primeiro efeito especial da história do Cinema.
...
Adiante: Como sabemos desde cedo houve pois convergência e divergência entre o Cinema e a Literatura apesar de alguns cineastas, como por exemplo, Ingmar Bergman terem repetido que "o cinema não tem nada que ver com a literatura". Com a proximidade narrativa e a contiguidade entre estas duas formas de expressão artística era inevitável que ambas estivessem condenadas a seguirem caminhos paralelos apesar de frequentemente bifurcarem para outros domínios...como nos jardins dos contos fantásticos de Jorge Luís Borges. Porém, a proximidade entre ambas as artes é inegável até na técnica: por exemplo um flash-back (muitas vezes usado no cinema em estados oníricos ou de nostalgia ou até para retroceder no desvendar de um mistério) não é mais do que a adaptação à arte do cinema da técnica literária da analepse.

Como vimos desde a sua génese o Cinema operou por aglutinação uma urdidura de teias com outras artes: por exemplo já em 1915 Louis Feuillade filmava "Les Vampires" numa digestão cinéfila do celebérrimo conto de Bram Stoker e em 1928 Buñuel e Dali usavam a celulóide como tela para as suas experiências surrealistas em "Un chien Andalou". Mais tarde o neo-realismo influenciou o cinema italiano do pós-guerra e mais tarde ainda o nouveau roman influenciou parcialmente, para o bem e para o mal, a nouvelle vague.

Como se vê a conexão entre o Cinema e as outras Artes é algo de congénito à 7ª arte. Sétima para superar a escala de Hegel que reduzia a nobreza da expressão artística respectivamente à arquitectura, escultura, pintura, música, dança e poesia. Curiosamente Hegel não incluíra no rol nem a literatura nem a filosofia. Creio que adaptar ao Cinema a filosofia de Hegel - impressa em obras como a "Ciência da Lógica" - seria um feito condenado ao fracasso artístico e comercial. Mas, a história veio a mostrar à saciedade que a literatura - que Hegel ignorara como arte - seria uma fonte inesgotável de inspiração para o cinema.

Porém, transpor para a tela a profundidade de um bom romance com toda a sua complexidade reflexiva, metafísica e existencial é uma obra de engenharia artística que raramente resulta. A propósito o Professor Carlos Reis, emérito académico da FLUC e especialista de Eça de Queiroz – autor repetidamente profanado nas diversas adaptações cinematográficas e televisivas da sua obra – disse e bem que "só nos satisfazem as adaptações cinematográficas de romances que nunca lemos".

Mas, a adaptação cinematográfica não pode ser vista como um decalque literal do original literário. Não há aqui lugar a uma relação de fidelidade mas infelizmente há recorrentes traições ao suporte original! Seja como for uma transposição que siga à vírgula o original também anula o Cinema como expressão artística. A relação entre o livro e filme é de diálogo em que não há subjugação ou equivalência. Se abandonarmos o paradigma da reprodução da fonte literária para o suporte cinematográfico a relação entre Cinema e Literatura deixa de ser problemática mas apenas estética e artística. Paradoxalmente, hoje, o caminho faz-se em sentido inverso e o final do Século XX assistiu à contaminação da literatura pela linguagem do cinema e das suas técnicas narrativas. Creio que a "Geração X" (1991) de Douglas Coupland é uma obra seminal dessa tendência.
...
Notas de um serão a Ler o Cinema na Livraria Solmar

Sem comentários: