sexta-feira, fevereiro 6

A Garganta Funda e o Caiador

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Estórias incontáveis
O Caiador
por Ferreira Almeida (*)

" Em 1976 estavam no auge em Ponta Delgada e arredores os filmes da pesada – pornográficos –, "conquista" recente, avidamente saboreada por sabidos e ingénuos.
Por falar em ingénuos, houve famílias muito recatadas que se empiriquitaram todas para ir ao Cine Lagoense ver "O último tango em Paris", "A grande farra" ou coisa parecida, sem saberem, nem exacta nem aproximadamente, ao que iam. Apenas tinham ouvido falar de uma moderna obra-prima da 7.ª Arte, um tanto prafrentex, era verdade, mas que não se poderia perder, a bem da cultura cinematográfica.
Durante as sessões, o silêncio da plateia era sepulcral, enquanto o ecrã mostrava cenas certamente chocantes, sublinhadas por ais, uis, suspiros e gemidos estereofónicos...E o constrangimento era tanto que, quando se acendiam as luzes, as pessoas nem tinham cara de olhar umas para as outras, jurando a si mesmas que nunca mais na porca da vida cairiam noutra esparrela.

Na Rua de Lisboa, entre a Vila Nova de Baixo e a sorumbática Rua da Alegria, perto do castelo de S. Brás, inaugurou-se naquele ano mais um cinema, para aproveitar o novo filão em plena exploração pelos cines Lagoense, Povoacense, Central (Fajã de Baixo), Pópulo e outros, (mas também pelos tradicionais Vitória e São Pedro), dedicados maioritária ou exclusivamente à rendosa especialidade, conhecida por cinema porno hard-core. Era o Cine S. José, aonde fiéis apreciadores iam amiúde "à missa", como então se dizia, muitos deles recorrendo a estratagemas para não serem vistos – compra do bilhete pelo empregado da firma, entrada e saída de roldão na sala às escuras, com o bacanal em pleno – quem é que ia desgrudar os olhos da pantalha?

Ocorre-me a estória daquela velhota solteirona, beata e incrédula com o que via na televisão! Escandalizada pelas fitas com direito a bolinha vermelha, esticava amiúde o pescoço para bem mais perto do aparelho, enquanto ajeitava nervosamente as cangalhas e arregalava os olhos, para melhor ver e condenar energicamente todas aquelas safadezas sem-vergonha.Ora, por exigência das muito justamente escandalizadas beatas da paróquia, que não se conformavam com o envolvimento do seu pobre, venerando e casto santo padroeiro naqueles regabofes e – diz-se – por pressão do Governo Regional, igualmente inconformado com tais promiscuidades, o Cine S. José teve de mudar de nome. Passou a Cine Alfa, agora sim, um nome mais consentâneo com o produto que a casa servia a uma clientela farta e certa.

Parece que nestes cinemas as sessões não eram contínuas. À soirée, algumas fitas justificavam duas sessões – às 22:30 e 24:00 –, com a casa a abarrotar de "porno-cinéfilos", não obstante o honesto e preocupado empresário, cheio de pruridos, avisar que o filme era imoral, e recomendar vivamente ao público para não o ver, por ser rigorosamente interdito a menores de dezoito anos, podendo ser exigido à entrada o bilhete de identidade. Não se aceitavam marcações. O homem bem que avisava, mas a malta não ligava peva! Em boa verdade, "quanto mais porco, mais toucinho".

À matinée, projectava-se a cândida "Pippi das meias altas", para maiores de seis anos, o inócuo "Parabéns senhor Vicente" e outras lamechices afins, próprias para os pais levarem a pequenada ao cinema em tarde de domingo. Assim se matavam, de uma só cajadada, a pasmaceira e vários coelhos.

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O oficial de dia ao Quartel General acabara de jantar e tomava um café no bar de oficiais. Intempestivamente, bateram à porta.
– Entre!
Mê cap´tã dá lecenca?
Era o Caiador, soldado muito popular no quartel. Natural de Vila Franca do Campo – terra de bons operários da construção civil – era meio tosco e esgrouviado, sempre com o uniforme (?) de trabalho borrado de tinta, graxa e esterco. Prestável, voluntarioso, um pau para toda a obra.
Vinha pedir uma dispensa do recolher, arengando que se esquecera de meter o papel na caixa das dispensas da Companhia. Precisava muito de sair.
– Ó Caiador, pra que queres uma dispensa de recolher a esta hora?
Êh mê cap’tã! É p’ra i ó cenema.
– Tá bem, assino a dispensa. E o que é que vais ver?
Eh senhô! Ê nam sei! É um firme!...
– Tá bem, dá cá o papel. Quando entrares, vens entregar-me a dispensa.
Sim senhô, mê cap’tã!
E lá foi o Caiador porta fora, lampeiro, pulando de contente com a dispensa no bolso.
Na abertura do portão da meia-noite, tal como o oficial de dia tinha prevenido, lá estava ele à porta do gabinete, prazenteiro, de olhar esfuziante, a mão direita numa continência às três pancadas e a esquerda com a dispensa em riste.
Mê cap’tã dá lecença?
– Entra. Diz-me lá! Como é que se chama o “firme” que foste ver?
Eh senhô! Nam sei!… Ê nam sei lê!
– Tá bem. Mas, e o "firme" era bom?
Aí, o Caiador arqueou lentamente os ombros, espetou os beiços num trejeito de macaco e, revirando os olhos semicerrados e libidinosos, apenas conseguiu soltar um longo, gutural e eloquente "Huuuuuuuuuuuuhhhhhhhh"!!!... "

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(*) nas crónicas do Terra Nostra sempre à sexta-feira.

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