segunda-feira, dezembro 4

Galeria de Vaidades #4



Entrada, 1917 (óleo sobre tela com colagem)
Centro de Arte Moderna (FCG), Lisboa.


Amadeo Souza-Cardoso (1887-1918) nasceu em Manhufe, concelho de Amarante, num tempo em que as elites portuguesas ainda resistiam à litoralização da inteligência. Começo por acentuar esta questão porque me aflige a imparável tendência para a desertificação do interior do país. Quem consultar a cartografia da população portuguesa na Idade Média ficará espantado com a amplitude do povoamento fronteiriço, junto aos chamados portos secos. Para os mais cépticos, aconselho uma vista de olhos pelo Livro das Fortalezas do Duarte Darmas, magnífico registo iconográfico da cordada de castelos raianos que habitualmente caracterizam uma paisagem de fronteira. Portugal sempre voltou as costas à Espanha, é certo, mas dantes olhava-a de frente e do alto das suas torres barbacãs. Agora, toda a gente foge em direcção ao litoral e a geografia das maternidades é regulada por critérios economicistas. O patriotismo está em vias de extinção e a pátria, no seu sentido locativo de "terra onde se nasceu", foi reformatada ao sabor do código postal dos Hospitais das zonas metropolitanas. Sintra, para onde Eça de Queiroz ia pastar, será em breve o concelho mais populoso do país. Poderia continuar pela IC-19 adiante, mas não quero perder de vista o Amadeo amarantino, conterrâneo de Teixeira de Pascoaes, o grande ideólogo do saudosismo nacional e autor da Arte de Ser Português.
Ao contrário de Pascoaes, Amadeo Souza-Cardoso trilhou o caminho dos estrangeirados e em 1906 foi para Paris estudar Arquitectura. Alojado em Montparnasse, onde os vapores verdes do absinto lhe coloriram a imaginação, depressa trocou o estirador pelo cavalete e, entre 1908 e 1916, consolida a sua formação no convívio mundano e artístico de Amadeo Modigliani, Juan Gris, Robert e Sonia Delaunay e Max Jacob, Constantin Brancusi e Alexander Archipenko. Até parece mentira, mas Domingos Rebelo também andava por lá nessa altura (1906-1912), graças a uma bolsa da família Andrade Albuquerque, que muito cedo apoiou a inclinação do jovem micaelense para o desenho e pintura. Porventura devido à sua tenra idade (15 anos) e ao enquadramento quase colegial da sua estadia em Paris, Domingos Rebelo passou ao lado das vanguardas e não respirou o l'air du temp, coisa que Amadeo Souza-Cardoso fez com sofreguidão ao ponto de se tornar o primeiro pintor modernista português com razoável projecção internacional. O grande José de Almada Negreiros, que lhe dedicou aquele seu admirável texto K4 Quadrado Azul, dizia com justiça no catálogo da Exposição Abstaccionismo (Lisboa, Liga Naval, Dezembro 1916) que Amadeo era a primeira Descoberta de Portugal na Europa do século XX. Foi uma descoberta, de facto, e tão primeira quanto efémera, pois Souza-Cardoso sucumbiria pouco tempo depois, em 1918, à epidemia da gripe pneumónica, entre nós significativamente conhecida pelo nome de a espanhola. Morreu em Espinho, a terra onde o seu amigo Manuel Laranjeira se tinha suicidado alguns anos antes. O desaparecimento prematuro de Amadeo e de Laranjeira simboliza como que um Portugal moderno nado-morto e nem mesmo a geração do Orfeu me faz esquecer essa perda irreparável.
Se forem a Lisboa nesta quadra natalícia e quiserem saber o que Portugal não foi e podia ter sido, passem uma tarde na Fundação Calouste Gulbenkian a ver a Exposição do Amadeo Souza-Cardoso e lembrem-se que ele nasceu perto de Amarante.

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