quarta-feira, agosto 24

ÍCONES DO SÉCULO XX - # 3

«Deus move o jogador e este move a peça.
Que Deus por trás de Deus o jogo começa ? »


In. Xadrez, de «O Fazedor»




A cartografia da modernidade do Sec. XX passa recorrentemente pelo nome de Borges que transformou e reinventou a Literatura. Jorge Luís Borges (1899-1986)nasceu na longínqua Argentina mas a sua obra havia de pertencer ao Mundo. Pelas suas mãos e memória criativa (já que a partir de 1956 tornou-se num inverosímil escritor cego !) passaram todos os grandes temas da Literatura. Para Borges a essência da realidade estava nos livros. Com estes manteria um diálogo permanente que hoje permanece em quem o lê. Quem se arrisca a mergulhar na sua obra acaba por mergulhar em toda a Literatura.

Quem foi este escritor que engendrou todo um universo inaugurando-o a partir da recôndita Buenos Aires ? Na resposta que se segue, trilhando uma cronologia necessariamente abreviada, o que fica é um bosquejo biográfico de Borges.

A remota infância de Borges fica marcada pelo fascínio pelos livros que descobre na vasta biblioteca de seu pai, sendo contagiado pelas aventuras que nunca recriaria na realidade, mas que viveu, nomeadamente, nas obras de Kipling, Mark Twain , H.G. Wells, Stevenson e nas «As mil e uma noites». Todo este universo fantástico será mais tarde transportado para a sua vasta obra literária. Da infância fica também um fascínio obsessivo pelos tigres e pelos espelhos que sugeriam um outro Borges (aquele que aterrorizado descobre em 1969 num banco de jardim - « que está em dois tempos e em dois sítios » - em Cambridge ou talvez em Genebra ! Esse encontro fantástico ficou registado no Conto «O Outro» , inserido no «O livro de Areia», editado em 1975. Nele o crepuscular Jorge Luís Borges, já septuagenário, relata o encontro com um jovem de vinte anos chamado Jorge Luís Borges. Um deles conclui o conto asseverando: «O encontro foi real, mas o outro conversou comigo num sonho e foi assim que pôde esquecer-me ; eu conversei com ele acordado e ainda me aflige a ideia. » ).

Criado num ambiente elegante é aos dez anos de idade que descobre, com assombro, a continuidade infinita da pampa argentina e o rude mundo «gauchesco» tão distante da cosmopolita Buenos Aires. Mais tarde, escapar-se-á para o submundo do tango e da outra Buenos Aires nocturna e marginal para a qual desenhou a sua própria mitologia. Em 1914 a familia viaja até Genebra , onde o seu pai buscava tratamento para as cataratas que assombravam os Borges, porém com o despoletar da Grande Guerra a família fica retida na Suíça. O jovem Georgie aproveita este aparente revés do destino estudando francês e alemão e deixa-se influenciar pelos «ultraístas» que, dogmaticamente, defendiam que a metáfora era a essência da poesia. No regresso à Argentina é como poeta de Buenos Aires que explode em «Fervor de Buenos Aires» que , como sublinhará anos mais tarde, prenuncia tudo o que faria depois, ou seja , é o prenúncio de toda uma obra singular e genial a que sempre se referiu com uma elegante imodéstia (recorde-se que tal hábito remonta ao prólogo de «Fervor de Buenos Aires» seduzindo o leitor nestes termos: «A quem ler : Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a indelicadeza de o ter usurpado previamente . Os nosso nadas pouco diferem ; é vulgar e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios e eu o seu redactor »).

Da sua fervorosa visão de Buenos Aires, redescoberta em 1921, fica a emoção de caminharmos com Borges por uma cidade que poderia ser todo o mundo e cujos sinais emergem de versos inolvidáveis, como por exemplo , Afterglow, O regresso, Inscrição em qualquer sepulcro, e, Troféu.

Mas o Borges que tantas gerações de leitores tem arrebatado é também aquele outro que se revela como senhor dos labirintos, mestre de enigmas irresolúveis, e contador de histórias fantásticas. Da sua singular imaginação extrai contos memoráveis e a sua erudição permite-lhe recriar outros tantos a partir de factos assépticamente inscritos na enciclopédia Britânica ,ou, apropriando-se de textos alheios e apresentando-os como uma outra realidade literária ( veja-se a propósito «O Outro», conto que é uma variação de um tema já tratado por Poe, Dostoievski e Stevenson e que, mais tarde, seria também abordado por Gore Vidal em «Um momento de louros verde» ). Desse divertimento diletante emergem algumas obras primas da literatura moderna e outras tantas pérolas do denominado género «fantástico» .

Incontornável é também a «História Universal da Infâmia» (1935) que, segundo o próprio Borges, é o resultado de «um jogo irresponsável de um tímido que não ousou escrever contos e se distrai a falsear e tergiversar histórias alheias».No referido volume de contos passeiam-se espécimens humanos cujas qualidades se reduzem à infâmia do seu carácter e à torpeza das suas acções. Esta obra, burilada em 1933, mostra o fascínio de Borges pelo lado marginal da natureza humana, temática que desenvolveu também no âmbito da literatura policial, sob o pseudónimo de Bustos Domecq, e em colaboração com Adolfo Bioy Casares. Bustos Domecq é outro divertimento de Borges, desta feita em parceria com Bioy. ~

Conheceu Bioy por volta de 1932 e apesar de os separar uma diferença de idades de cerca de duas décadas tal acidente cronológico não obstou à união de infinitas aventuras literárias. A primeira delas é absolutamente Borgiana e inverosímil já que ambos os escritores colaboram na edição encomendada de uma brochura enaltecendo as virtudes do Iogurte ! Porém, tirando este percalço motivado por chãs motivações financeiras , toda a restante colaboração literária é notável e ambos editam em 1940 uma «Antologia da Literatura Fantástica». Entretanto, Bioy edita um romance fantástico intitulado «A Invenção de Morel» que merece de Borges um prólogo-manifesto em favor de um novo género literário edificado na imaginação raciocinada.

Conhecida, ainda que superficialmente , a obra destes dois Argentinos, logo se intui que a atmosfera do chamado realismo fantástico é afinal arquitectada sob os cânones padronizados por Borges e Bioy. Da obra de Borges destacam-se ainda «Ficções» ( 1944 ) e o «Aleph» ( 1949 ). Ambos os livros constituem um acervo notável de contos fantásticos dos quais se destacam o labiríntico «Jardim dos caminhos que se bifurcam» e o «Imortal» que nos narra a desilusão da alquimia da imortalidade. A imortalidade e a eternidade são também temáticas Borgianas que aborda em ensaios que não se resumem à enunciação erudita de factos mas cuja preocupação literária metamorfoseia em contos. Veja-se a propósito a «História da eternidade» ( 1936) e a dissecação fabulosa que opera nas doutrinas do tempo circular. Os labirintos de Borges tocam ainda a metafísica oriental do Budismo e do Hinduismo insinuando que o sentido da vida pode resumir-se ao desenlace ameaçador de uma mera ilusão.

À margem das ilusões que ilustram a vida bibliográfica há o outro Borges a que o próprio se referia como o Borges oficial ou público. E deste Borges real resta-nos também um quadro fantástico já que a polémica e a teimosia são também marcas da sua personalidade. Teimou em ser opositor de Péron e com tal extravagante atitude vê-se «promovido», em 1946, a inspector de aves e coelhos nos mercados municipais...naturalmente demitiu-se. Proibido de ler e escrever pelos oftalmologistas , insiste, e fica irremediavelmente cego. Continuou a «escrever» compondo os seus contos ditando-os de memória, e, apesar da cegueira é nomeado em 1955 Director da Biblioteca Nacional Argentina ! Ao arrepio dos intelectuais sul americanos da época foi um encarniçado opositor do comunismo e como prémio escapou-se-lhe vezes sem conta o Nobel da literatura. Mais tarde, penosamente, apercebeu-se das atrocidades da cáfila militarista que dominou o poder na América do Sul, a pretexto de aniquilar os «subversivos», e logo se apressou a militar nas fileiras da democracia. Convencido eticamente e vencido politicamente fez tudo o que podia para que a sua Argentina expurgasse o «militarismo absurdo» e ainda assim teimava que «a democracia é, como todos sabem, uma superstição baseada em estatísticas» !

Porém , o empenho que o Borges oficial investiu na luta contra o governo dos generais teve como retorno o reconhecimento do seu povo. Em tempos visto como um intelectual embalsamado no pedestal da ilusão terminou os seus dias como um intrépido herói Nacional e paladino da democracia. Enfim , acasos urdidos pelo jogo do Destino ? Mas ... que Deus atrás de Borges iniciou o ardil do seu destino ? Só sabemos que o sagaz Borges escolheu morrer em Genebra e que o essencial da sua vida continua assegurado em vidas alheias.

o Eterno Jorge Luís Borges nasceu a 24 de Junho de 1899 em Buenos Aires.

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(Reedição de um texto do # 5 da Revista :Ilhas)

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