Um manifesto pela paz a propósito de Terrorismo em todas as suas formas.
Perante o horror, perante a barbárie, toda a razão se torna irrelevante. A sôfrega racionalidade com que olhamos as coisas sucumbe perante o primarismo selvagem das acções e dos actos próprios da guerra. 11 de Setembro foi um dia de sol e no trabalho longe de uma televisão fui escutando na rádio as palavras surdas de espanto de quem via o desabar de um símbolo. Ainda hoje me comovo quando revejo essas imagens. O mesmo tipo de emoção física, gástrica, com que se olha para os horrores dos campos de concentração nazis, as listas de mortos dos gulags siberianos, os instrumentos de tortura dos padres da inquisição, um quadro de Goya, uma foto do Vietname, todos os milhares de momentos em que ao longo da história o homem esqueceu a humanidade. É com o mesmo aperto no estômago que vejo as fotos que por estes dias correm pelas notícias do mundo e nos reflectem no pior de nós mesmos. Tento por um instante pôr de lado a ideologia, se é que consigo, pôr de lado a partidarite e olhar para o estado em que está o mundo buscando uma réstia de esperança. Nunca deixamos de viver sob ameaça e por maior que fosse a ilusão dos 50s, 60s e 70s, o equilíbrio musculado que sustinha o nosso mundo não era mais do que uma cosmética que desabou junto com os quilómetros de betão que dividiam a Alemanha. Bem no fundo do homem estava a propensão para o ódio que sempre governou os corações fracos. A única certeza do homem é a morte. (Alias, Mariana, escrever é tentar iludir a morte.) É exactamente por isso que devemos estar sempre contra a morte. Todas as guerras merecem condenação, desde a Jihad de Ben Laden à "cruzada" adventista de George W. Bush, ambas com igual veemência. Perante a tortura não pode haver condescendência e por mais que se mascare a tortura com palavras fúteis como sevicias, maus-tratos, humilhação, a verdade é que se trata de tortura e essa é a mais baixa das acções cometidas por seres humanos. Donald Rumsfeld é, na minha opinião, como aqui já o expressei, a face mais grotesca desta guerra, mas quando na sexta-feira passada Rumsfeld se apresentou perante o Congresso americano tomou a única atitude digna a uma homem na sua posição. Rumsfeld aos olhos de todos pediu desculpa ao seu presidente, ao congresso, ao povo americano e ao povo iraquiano pela conduta das suas tropas. Nesse gesto está contida a réstia de esperança que me permite olhar para o nosso tempo sem desesperar. Recuso-me a ver hipocrisia ou mentira nesse gesto, recuso olhar com desdém as palavras de arrependimento. Nessa sessão um dos participantes, o senador Lieberman, um democrata, referiu e cito de memória, que apesar de estes actos de tortura perpetrados pelas tropas americanas terem que ser condenados com toda a impetuosidade a declaração de Rumsfeld tinha que ser elogiada, porque nesse pedido de desculpa reside o cerne do humanismo que desde a declaração de independência governa os Estados Unidos e inspira todas as nações civilizadas, a procura do bem e a tentativa de em justiça punir o mal. Lieberman afirmou que os milhões de pessoas que perderam a vida ou os seus familiares no 11 de Setembro nunca tiveram direito a um gesto sequer parecido, nunca se ouviu do lado do fundamentalismo islâmico uma só palavra de desculpa. É ai que reside o fundo deste choque de civilizações. Uma entrevista como a do sheik Bahkri é o exemplo último do perigo que corremos, todos nós que vivemos para lá do Corão. Não podemos fugir disso, estamos condenados a viver as nossas vidas com o fantasma dessa morte infligida sobre nós, mas é na crença humanista de que é possível o diálogo com o caos que deve assentar o cerne da nossa acção. Perante o horror Rumsfeld optou pela única saída humana e nesse acto permitiu-nos acreditar. Trata-se obviamente de um detalhe mas um detalhe determinante. Numa guerra é pela forma como tratamos os prisioneiros que medimos a justeza da nossa acção. Ben Laden não faz prisioneiros. Mas a uma morte não se deve responder com outra morte. Eu condeno Bush e Rumsfeld, tal como condeno Ben Laden, por esta guerra, mas nesse gesto Rumsfeld humanizou-se e foi possível perdoar. É preciso acabar com esta guerra e isso só será possível com o diálogo entre os homens destas duas civilizações, porque só no diálogo os homens se completam, porque passam da cegueira das acções fanáticas para a luz do entendimento. Todos nós que acreditamos nos valores de fraternidade e igualdade que fundamentam a nossa civilização ocidental devemos contribuir para este diálogo e para esse entendimento. Trata-se no fundo de uma luta pela preservação não do nosso estilo de vida, ou pela transformação do mundo árabe, não, trata-se, isso sim, de uma luta pela subsistência da humanidade em toda a sua múltipla diversidade e esplendor. É por isso que as Nações Unidas não podem ser apenas um dossier burocrático, é por isso que devemos acreditar na sabedoria dos povos democráticos, é por isso que perante o horror devemos saber dar a outra face, para podermos encontrar a outra face.
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