“um médico que, de nariz enfiado nos casos, sem conseguir
ver para além dos órgãos que possui (…), prolongaria o estado de emergência
sanitária até ao fim dos tempos;” Bernard-Henri Lévy
Passado que foi o breve hiato democrático das eleições
voltámos, candidamente, ao fascismo sanitário. No final da última semana, o
Conselho de Governo regurgitou duas novas medidas ditatoriais, como que a
querer marcar em definitivo, no seu epitáfio, a mensagem de que em matéria de autoritarismo
covidiano ninguém o ultrapassa. Depois de meses em que nos foi impingida a
ideia de que as escolas eram seguras, que as máscaras eram não só
imprescindíveis como determinantes para a segurança de professores e alunos, de
que todo o universo escolar tinha sido devidamente preparado, setas no chão,
filas indianas, regras e mais regrinhas de distanciamento e 20 lavagens da mãos
por dia, e que tudo tinha sido acautelado para podermos voltar ao regime
presencial. Depois de todos termos finalmente percebido que a escola é um
elemento crucial ao bem-estar e ao desenvolvimento das crianças e que estas não
são um grupo de risco, eis que a ordem chegou, numa sexta-feira à tarde, de
fechar tudo outra vez. Por causa de um ou dois casos em cada escola, num
universo de milhares de alunos, de crianças que testaram positivo, sendo que
com toda a certeza o contágio se deu em ambiente familiar ou outro que não a
escola, o Governo decidiu encerrar, para já, 19 estabelecimentos de ensino na
região. Atrelado a isto chegou também a ordem de que quem queira embarcar um
avião com destino a estes nove calhaus terá que, impreterivelmente, apresentar
um teste negativo à menina do check in.
Depois de umas brevíssimas semanas em que parecia que o
SARS-CoV-2 tinha ido de férias para o Douro, enquanto por cá a política se
entretinha com os tramites da lotaria eleitoral, na última semana o maroto
vírus saltou de uma casa de bonecas para uns quantos restaurantes e dai, num
sopro, para a população em geral. Em cerca de pouco mais de quinze dias a
região passou de 68, no dia 25 de outubro, para 185 casos ativos, ao dia de
hoje. Foi quase como se o vírus estivesse à espera das eleições para apanhar um
avião para os Açores…
Perante isto, menos de 200 casos numa população de 250 mil (0,07%),
fiéis aos seus galões de Autoridade de Saúde, Tiago Lopes, e Vasco Cordeiro, já
agora, decidem determinar mais umas daquelas medidas autoritárias, antidemocráticas,
desumanas e inconstitucionais a que já nos habituaram. E, aparentemente agora,
com o aval tácito dos Drs. Bolieiro e Maurício, que ninguém lhes viu piar sobre
a matéria. Como se já não bastasse a senda persecutória dos governantes da república,
que ordenam recolheres obrigatórios e confinamentos como quem escolhe uma
gravata, as nossas autoridades locais abraçam-se à arbitrariedade e ao
despotismo com a facilidade de um piscar de olhos. António Costa, ainda por
cima, com o desplante de nos incutir a nós o ónus da disseminação. A culpa do
contágio, diz-nos ele, é nossa, dos cidadãos e das famílias, somos nós que não
nos sabemos comportar e não cumprimos as regras. Só faltou o puxão de orelhas e
a rabada. Por cá, agora, são as crianças não só as culpadas como,
ultrajantemente, as principais penalizadas. Por causa de uma dúzia de casos
milhares de crianças são remetidas de novo ao enclausuramento domiciliário. Sem
nunca sequer se pensar nos efeitos devastadores que essa medida tem e terá nestes
miúdos.
E, da mesma forma que o governo se rege por uma visão desinfetada
das nossas vidas insiste, por outro lado, em desrespeitar não só a Constituição,
mas também os mais básicos princípios do Estado de Direito Democrático
coartando as mais primárias liberdades individuais dos cidadãos. Naquilo que o
filósofo italiano Giorgio Agamben alertou como “a tendência de utilizar um
estado de exceção como paradigma normal de governo”. Aparentemente não
aprenderam nada com os Habeas Corpus que perderam nem com os recursos que lhes
foram negados. Cito, livremente, de um dos acórdãos do Tribunal da Relação de
Lisboa “a prescrição de atos médicos ou de diagnóstico relativamente a toda
ou qualquer pessoa é da exclusiva responsabilidade de um médico e não pode ser
realizada por Lei, Resolução, Decreto regulamentar ou qualquer outra via
normativa.” O Governo Regional não só tinha conhecimento deste acórdão como,
embriagado de autoritarismo, decide conscientemente contra a Constituição a e
liberdade dos cidadãos. E, mais uma vez, dado o silêncio dos incumbentes
eleitos, nada leva a crer que nesta matéria tão importante algo venha a mudar,
provavelmente até tenderá a piorar, com o novo governo das direitas encostadas…
A crise do Covid-19 é um momento determinante nas nossas
vidas e será também na história da Humanidade. Este “cisne cinzento” em que
vivemos transformou aquilo que em literatura era apenas uma metáfora para a
perda da liberdade, A Peste de Camus, para ser uma epidemia real, não já só de
um vírus, mas de autoritarismo e de destruição das democracias liberais
ocidentais tal como as conhecíamos, como bem explica Ivan Krastev em O Futuro
Por Contar. Fechar fronteiras é a mais básica e arcaica das respostas a um mal
desconhecido. É o regresso ao mais primordial, animalesco até, instinto de fuga
que o medo desperta. E a incapacidade dos governos de saberem ou quererem contrariar
esses instintos animais revela o quão frágil é a nossa sociedade, a nossa
democracia e as nossas liberdades individuais. E, no fim, será, também, esta
deriva que levará ao crescimento e à legitimação dos populismos autoritários e
demagógicos, um pouco por toda a Europa, de Orban a André Ventura. A democracia
morrerá por dentro, porque os seus principais atores, no momento mais
importante, não a souberam ou quiseram defender. Entregámo-nos de livre e espontânea
vontade aos dictates das ciências médicas, que não sabem nada de filosofia, ou
de história, aceitámos a selvagem desociabilização do confinamento com uma
naturalidade abjeta, virámos a cara às profundas desigualdades de um mundo em
que se ordena cegamente os mesmos termos arbitrários para quem tem uma casa com
piscina e jardim e um ordenado garantido ao final do mês e para quem não tem
nada…
O futuro dirá, e em particular os nossos filhos, que são os mais amargamente prejudicados por esta pandemia, que legado estamos a deixar. Se um mundo de isolamento, de aprisionamento, de iniquidade e autoritarismo. Ou, pelo contrário, se no meio desta destruição massiva dos mais importantes valores da nossa civilização, que estamos paulatinamente a assistir, descobriremos a revolta e a força interior para, como nos incentivou Proudhon, deixarmos de estar de joelhos e nos levantarmos…
1 comentário:
Eu votei no André Ventura. Por que razão ele não foi eleito deputado pelos Açores?
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