sábado, novembro 28

da estagnação como escapatória política

 

The fault, dear Brutus, is not in our stars, but in ourselves.

William Shakespeare, Julius Caesar

Desde o dia 25 de outubro que o Partido Socialista dos Açores vive baloiçado entre um estado semi catatónico, de quem acabou de sair de um desastre rodoviário, e a denegação própria de quem se recusa a reconhecer uma realidade física, concreta e palpável. Perante este tortuoso tumulto interior o Partido, e principalmente a sua direcção, refugiaram-se no discurso da vitória moral, da usurpação do poder, da ilegitimidade parlamentar, da desconsideração institucional, dos “pecados capitais”, do “maior grupo parlamentar” e todo um outro conjunto de argumentários cujo denominador comum, por mais verdadeiros que sejam todos esses raciocínios, é a rejeição do reconhecimento que o cenário político regional mudou diametralmente desde esse dia até à realidade, que temos hoje, das direitas instaladas no poder.

Esta neurose psíquico-politica em que o Partido tem vívido, desde esse dia traumático, tem levado a, por um lado, uma estupefacção silenciosa da sua militância, remetida a uma espectativa hesitante e medrosa e, por outro, ao calculismo egocêntrico e autista da direcção do Partido, cujo distanciamento altivo e cobarde tem levado à renuncia de um prestar de contas lúcido, corajoso e transparente sobre as causas e as consequências políticas desse fatídico dia 25 de outubro.

Recorrentemente, ao longo destes dias, a pergunta mais repetida, quer nos megafones da comunicação social, quer no relativo recato das conversas entre militantes, foi sobre a continuidade, ou não, de Vasco Cordeiro na liderança do Partido. Após se ter confirmado o assumir de Vasco Cordeiro do seu mandato como deputado, eis que esta sexta-feira descobrimos o porquê da sua permanência. Vasco Cordeiro fica para poder assumir, no longínquo mês de julho de 2022, a Presidência do Comité Europeu das Regiões, cujos membros tem necessariamente que ser representantes eleitos de autoridades regionais ou locais.

Pois, a questão que agora se coloca é: quais as consequências para o Partido desta permanência? Em face do cataclismo eleitoral, Vasco Cordeiro e a sua direcção, optam pela continuidade despreocupada, quase ingénua não fora maquiavélica, ou então uma espécie de pausa, como que a pedir um time-out no jogo político, cultivando ainda uma vã esperança de que o adversário possa, por alguma razão, soçobrar a breve trecho, permitindo-se assim a sua sobrevivência institucional para, em última instância, assumir outros voos na rota Estrasburgo – Bruxelas e, também, deixar que a restante direcção possa passear a sua travessia do deserto no confortável regaço da imunidade parlamentar. Esta estagnação, este deixar como está político, fazendo de conta que os resultados eleitorais não representam uma derrota do Partido, querendo-nos fazer acreditar que não houve desgaste, exaustão e censura dos eleitores à governação do Partido, às escolhas individuais e aos desmandos pessoais e colectivos de 24 anos no poder, representa uma condenação do Partido, no médio e no longo prazo, ao cadafalso da irrelevância política. Não querer, por puro calculismo e egoísmo político fazer a devida catarse e a necessária ruptura com os resultados eleitorais e com a realidade do novo panorama político regional representa o total e completo claudicar da ideia de um Partido Socialista honrado nos seus compromissos, verdadeiro nas suas convicções e, acima de tudo, integro e desprendido, pondo sempre na frente da sua actuação política o futuro e os interesses de todos em lugar de apenas uns e dos Açores em lugar dos seus.

Ou Vasco Cordeiro compreende já a sua responsabilidade neste momento e assume-se como agente fundamental dessa ruptura, ou as bases e a militância exigem e demonstram essa verticalidade e essa coragem para cortar com o que de pernicioso existe no seu passado, ou o futuro do Partido Socialista dos Açores é a ruína e a irrelevância por muitos e bons anos, ou, pelo menos, os anos que os açorianos levarem a fartar-se, também, da governação desses que agora se vão apressar a entrincheirar nos imensos palácios do poder e da governação...

sábado, novembro 21

Brevíssimas notas sobre o novo Governo Regional


ou curtas impressões caricaturais sobre o Governo das direitas encostadas…

a)       Presidente do Governo Regional

No seu habitual estilo palavroso, gongórico até, José Manuel Bolieiro, o nosso Boli amigo, apresentou ontem, nas cercanias do Solar da Madre de Deus, nessa mui nobre cidade de Angra do Heroísmo, aquilo a que o próprio chamou de um Governo não “acomodatício” e “transformista” sic. A principal característica de Bolieiro, nestes últimos anos, foi estar quieto, quase escondido, passando pelos pingos da chuva, como uma gata em telhado de zinco quente, de forma que pouco mais lhe conhecermos de acção política do que uma muito alardeada simpatia, a que agora se acrescentou uma denodada capacidade negocial. Temo, tanto pelo claudicar político e ideológico dos Acordos de Governação e de Incidência Parlamentar, como pela constituição do próprio Governo, que tais dotes estejam grandemente inflacionados e que o que fique do novo Presidente do Governo não seja mais do que a retórica barroca de um magistrado frustrado. A herança que ficará deste governo, das direitas regionais, só o futuro dirá e, se lhe não podemos dar o habitual estado de graça, pela voragem sórdida e apressada do seu assalto ao poder, podemos, pelo menos, dar-lhe o regimental benefício da dúvida.

b)      Vice-Presidente

Artur Lima é, por todas as razões e mais alguma, o mais assumidamente transformista dos membros deste governo. Uma verdadeira Belle Dominique da astúcia política, com décadas de travestismo parlamentar no seu currículo. Mas, o facto significativo da orgânica deste governo não é tanto o estatuto de Vice, que se coaduna perfeitamente com a soberba e a panache de Artur Lima, mas o assegurar cumulativo da pasta da Segurança Social, que guarda dentro de si, qual bomba relógio, o ponto fulcral da coligação com o CHEGA!. O cumprimento, ou não, das promessas de ataque, sem dó nem piedade, à “subsidiodependência” são o seguro de vida desta coligação e, muito me espantaria que, no curto prazo, não desse a Artur Lima um achaque de “irrevogabilidade” que fizesse cair esta Gaiola de Malucas que é esta coligação das cinco direitas insulares.

c)       Secretário Regional da Saúde e Desporto

Clélio Meneses fica com a pasta mais efervescente do momento. A gestão da pandemia, até aqui protagonizada por Tiago Lopes e Vasco Cordeiro, tem sido feita na base do pânico e do extremismo ideológico do fascismo sanitário, criando não só profundas feridas sociais, económicas e institucionais, como divergências acentuadas com os principais protagonistas do sector: médicos, enfermeiros, etc. Acresce, que esse era já, cronicamente, um sector profundamente doente, com a gangrena da dívida e das listas de espera a crescer exponencialmente de dia para dia, mais do que qualquer mundana cadeia de transmissão. A promessa, irrealizável, de garantir a formação de médicos especialistas é apenas um exemplo de como a gestão de espectativas é ainda mais importante para estes políticos do que a realidade dos factos e a verdade dos factos é que a região não tem nem competência, nem meios, para formar médicos especialistas.

d)      Secretária Regional da Educação

A grande questão sobre Sofia Ribeiro é há quantos anos não entra numa sala de aula ou corrige um teste? Podemos, de balde, reconhecer-lhe competência e inteligência para desempenhar qualquer cargo, mas ficará sempre a questão se não estaria melhor numa pasta de Relações Exteriores, ou Fundos Europeus, do que a remexer no caldeirão reivindicativo e hiper-sindicalizado do sector da educação. O nome com a pasta é mais um daqueles sinais claros de como este é mais um governo de desenrascanço político-partidário do que verdadeiramente “transformador”. Por outro lado, a colocação de Sofia Ribeiro a número quatro do Governo é mais um tiro no porta-aviões da ambição política de Pedro Nascimento Cabral, a quem calhou a fava de todo este bolo-rei governativo: a liderança da bancada parlamentar.

e)      Secretário Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública

Num momento como o atual é incompreensível e, até certo ponto, indesculpável a inexistência de uma pasta da Economia. A agregação de Finanças, Planeamento e Administração Pública leva a temer o pior em qualquer uma destas áreas. Que, quer pela sua dimensão gargantuana, como pelos desafios com que estão confrontadas não permitem perspectivar que um secretário, por mais competente que seja ou experiência que tenha possa, de facto, correr a todas as suas solicitações. Joaquim Bastos e Silva é uma figura com provas dadas e craveira intelectual, mas gerir as finanças públicas regionais, ainda por cima herdando a pasta das mãos de alguém como Sérgio Avila e, ao mesmo tempo, levar a cabo a reforma da administração pública regional, que tem o peso que tem na vida dos açorianos, é uma tarefa hercúlea, mesmo para um leitor assíduo do Financial Times.

f)       Secretário Regional da Agricultura e Desenvolvimento Rural

António Ventura é uma figura inenarrável, que representa, neste Governo, o pior que o costumeiro caciquismo político regional tem para oferecer. Talvez por isso Jorge Rita se tenha apressado a vir elogiá-lo publicamente. Aguardo com curiosidade a prometida “digitalização do sector primário”. Por outro lado, reduzir os muitos desafios da transição do sector agrícola da massificação leiteira para outras culturas às suas condições edafoclimáticas é manifestamente pouco, para aquele que é o principal sector da nossa economia. Já agora, edafoclimáticas não leva hífen.

g)       Secretário Regional do Mar e Pescas

Consta que o novo secretário do Mar adormece nos seus próprios julgamentos, nada mais adequado a quem se pretende lançar aos balanços ondulantes do vasto mar açoriano. Que lhe valha Neptuno, parece-me adequado para um monárquico.

h)       Secretária Regional da Cultura, Ciência e Transição Digital

Confesso que devo elogiar a ascensão, finalmente, da Cultura ao estatuto de secretaria, embora o cocktail de Ciência e Transição Digital, ou lá o que isso signifique, deixe um sabor um pouco adstringente. Ficará para ver como se procederá a ligação com a Administração Publica e outras pastas onde essa dita transição é mais premente.

i)        Secretário Regional do Ambiente e Alterações Climáticas

Tirando o facto de ser pupilo de Artur Lima muito pouco há a dizer sobre Alonso Miguel. As alterações climáticas são um dos maiores desafios do nosso tempo e a preservação ambiental uma responsabilidade enorme numa região como a nossa. Esperemos que a ânsia transformista não contamine esta pasta, onde, mais do que transformismo, o que se exige é conservacionismo.

j)        Secretário Regional dos Transportes, Turismo e Energia

A pasta do Turismo foi protagonista de um episódio absolutamente revelador e paradigmático das idiossincrasias e fragilidades deste Governo. Corria o boato que Bolieiro, apesar dos seus dotes oratórios, não estava a conseguir convencer os famosos especialistas, independentes e profissionais liberais a juntarem-se à sua trupe governativa. É preciso perceber que ninguém com carreira e um emprego estável e bem remunerado na privada, ou simplesmente que esteja no seu perfeito juízo, quereria juntar-se a um Governo que deve a sua longevidade a dois ogres do neo-fascismo-luso. De qualquer modo, quando começou a correr o nome de Mota Borges, todos pensámos tratar-se de Alberto Mota Borges. O que, sendo verdade, era uma excelente escolha, não só pelo seu currículo, a sua competência e ética de trabalho, e por ser um conhecedor das áreas que iria tutelar: aviação e turismo. Inclusive a sua fotografia chegou a fazer manchete no jornal, o que só revela que só acredita nos jornais quem nunca leu uma notícia sobre si próprio. Porém, o Mota Borges afinal era o irmão mais novo, o que, apesar da importância da mera existência da pasta, deixou o chamado Trade num desolado emudecimento.  

k)       Secretário Regional da Juventude, Qualificação Profissional e Emprego

A presença de Duarte Freitas neste elenco governativo é-me totalmente incompreensível e só é explicável por uma qualquer praxe de subserviência ao protagonismo partidário do mesmo. O que, levado ao extremo, levaria que Berta Cabral, Costa Neves, Álvaro Dâmaso e todos os outros anteriores líderes do partido na oposição fossem agora premiados e chamados a dar o seu douto e vetusto contributo neste novo ciclo governativo. Bem vistas as coisas, se calhar até dava um governo melhor do que este… Por outro lado, o conteúdo da pasta e tão ilustre figura partidária leva a prever o pior no que toca ao agenciamento de empregos para militantes, jotas e outros apêndices da clique social democrata.

l)        Secretária Regional das Obras Públicas e Comunicações

Ana Carvalho, não obstante a sua fama de competência, vem também na esteira desta desmumificação das relíquias social-democratas de antanho, o que diz tudo sobre a capacidade de Bolieiro, e da sua Gaiola de Malucas, de aliciarem novos quadros técnicos e políticos para a árdua tarefa de governar estes nove bocados de contra maledicência plantados no oceano atlântico.

m)    Subsecretário Regional da Presidência

Por fim, Pedro Faria e Castro, uma simpática figura, que ficará com a difícil incumbência de manter o Nuno Barata bem-disposto ao longo da legislatura, o que não se avizinha ser tarefa fácil.

le jeu sont fait rien ne va plus

domingo, novembro 15

É hora de nos levantarmos…

 

foto Rodrigo Antunes/LUSA

um médico que, de nariz enfiado nos casos, sem conseguir ver para além dos órgãos que possui (…), prolongaria o estado de emergência sanitária até ao fim dos tempos;” Bernard-Henri Lévy

Passado que foi o breve hiato democrático das eleições voltámos, candidamente, ao fascismo sanitário. No final da última semana, o Conselho de Governo regurgitou duas novas medidas ditatoriais, como que a querer marcar em definitivo, no seu epitáfio, a mensagem de que em matéria de autoritarismo covidiano ninguém o ultrapassa. Depois de meses em que nos foi impingida a ideia de que as escolas eram seguras, que as máscaras eram não só imprescindíveis como determinantes para a segurança de professores e alunos, de que todo o universo escolar tinha sido devidamente preparado, setas no chão, filas indianas, regras e mais regrinhas de distanciamento e 20 lavagens da mãos por dia, e que tudo tinha sido acautelado para podermos voltar ao regime presencial. Depois de todos termos finalmente percebido que a escola é um elemento crucial ao bem-estar e ao desenvolvimento das crianças e que estas não são um grupo de risco, eis que a ordem chegou, numa sexta-feira à tarde, de fechar tudo outra vez. Por causa de um ou dois casos em cada escola, num universo de milhares de alunos, de crianças que testaram positivo, sendo que com toda a certeza o contágio se deu em ambiente familiar ou outro que não a escola, o Governo decidiu encerrar, para já, 19 estabelecimentos de ensino na região. Atrelado a isto chegou também a ordem de que quem queira embarcar um avião com destino a estes nove calhaus terá que, impreterivelmente, apresentar um teste negativo à menina do check in.

Depois de umas brevíssimas semanas em que parecia que o SARS-CoV-2 tinha ido de férias para o Douro, enquanto por cá a política se entretinha com os tramites da lotaria eleitoral, na última semana o maroto vírus saltou de uma casa de bonecas para uns quantos restaurantes e dai, num sopro, para a população em geral. Em cerca de pouco mais de quinze dias a região passou de 68, no dia 25 de outubro, para 185 casos ativos, ao dia de hoje. Foi quase como se o vírus estivesse à espera das eleições para apanhar um avião para os Açores…

Perante isto, menos de 200 casos numa população de 250 mil (0,07%), fiéis aos seus galões de Autoridade de Saúde, Tiago Lopes, e Vasco Cordeiro, já agora, decidem determinar mais umas daquelas medidas autoritárias, antidemocráticas, desumanas e inconstitucionais a que já nos habituaram. E, aparentemente agora, com o aval tácito dos Drs. Bolieiro e Maurício, que ninguém lhes viu piar sobre a matéria. Como se já não bastasse a senda persecutória dos governantes da república, que ordenam recolheres obrigatórios e confinamentos como quem escolhe uma gravata, as nossas autoridades locais abraçam-se à arbitrariedade e ao despotismo com a facilidade de um piscar de olhos. António Costa, ainda por cima, com o desplante de nos incutir a nós o ónus da disseminação. A culpa do contágio, diz-nos ele, é nossa, dos cidadãos e das famílias, somos nós que não nos sabemos comportar e não cumprimos as regras. Só faltou o puxão de orelhas e a rabada. Por cá, agora, são as crianças não só as culpadas como, ultrajantemente, as principais penalizadas. Por causa de uma dúzia de casos milhares de crianças são remetidas de novo ao enclausuramento domiciliário. Sem nunca sequer se pensar nos efeitos devastadores que essa medida tem e terá nestes miúdos.

E, da mesma forma que o governo se rege por uma visão desinfetada das nossas vidas insiste, por outro lado, em desrespeitar não só a Constituição, mas também os mais básicos princípios do Estado de Direito Democrático coartando as mais primárias liberdades individuais dos cidadãos. Naquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben alertou como “a tendência de utilizar um estado de exceção como paradigma normal de governo”. Aparentemente não aprenderam nada com os Habeas Corpus que perderam nem com os recursos que lhes foram negados. Cito, livremente, de um dos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa “a prescrição de atos médicos ou de diagnóstico relativamente a toda ou qualquer pessoa é da exclusiva responsabilidade de um médico e não pode ser realizada por Lei, Resolução, Decreto regulamentar ou qualquer outra via normativa.” O Governo Regional não só tinha conhecimento deste acórdão como, embriagado de autoritarismo, decide conscientemente contra a Constituição a e liberdade dos cidadãos. E, mais uma vez, dado o silêncio dos incumbentes eleitos, nada leva a crer que nesta matéria tão importante algo venha a mudar, provavelmente até tenderá a piorar, com o novo governo das direitas encostadas…

A crise do Covid-19 é um momento determinante nas nossas vidas e será também na história da Humanidade. Este “cisne cinzento” em que vivemos transformou aquilo que em literatura era apenas uma metáfora para a perda da liberdade, A Peste de Camus, para ser uma epidemia real, não já só de um vírus, mas de autoritarismo e de destruição das democracias liberais ocidentais tal como as conhecíamos, como bem explica Ivan Krastev em O Futuro Por Contar. Fechar fronteiras é a mais básica e arcaica das respostas a um mal desconhecido. É o regresso ao mais primordial, animalesco até, instinto de fuga que o medo desperta. E a incapacidade dos governos de saberem ou quererem contrariar esses instintos animais revela o quão frágil é a nossa sociedade, a nossa democracia e as nossas liberdades individuais. E, no fim, será, também, esta deriva que levará ao crescimento e à legitimação dos populismos autoritários e demagógicos, um pouco por toda a Europa, de Orban a André Ventura. A democracia morrerá por dentro, porque os seus principais atores, no momento mais importante, não a souberam ou quiseram defender. Entregámo-nos de livre e espontânea vontade aos dictates das ciências médicas, que não sabem nada de filosofia, ou de história, aceitámos a selvagem desociabilização do confinamento com uma naturalidade abjeta, virámos a cara às profundas desigualdades de um mundo em que se ordena cegamente os mesmos termos arbitrários para quem tem uma casa com piscina e jardim e um ordenado garantido ao final do mês e para quem não tem nada…

O futuro dirá, e em particular os nossos filhos, que são os mais amargamente prejudicados por esta pandemia, que legado estamos a deixar. Se um mundo de isolamento, de aprisionamento, de iniquidade e autoritarismo. Ou, pelo contrário, se no meio desta destruição massiva dos mais importantes valores da nossa civilização, que estamos paulatinamente a assistir, descobriremos a revolta e a força interior para, como nos incentivou Proudhon, deixarmos de estar de joelhos e nos levantarmos…

terça-feira, novembro 10

E agora PS?

 

foto André Kosters/LUSA

Os Açores são, por natureza, uma região conservadora. Talvez seja pela força do mar, do isolamento, da distância ou do sopro agreste dos ventos do Inverno e dos sulcos vincados do solo montanhoso das ilhas, feitos de grotas e ribeiros e escarpados veios vulcânicos. Ou, talvez, de séculos de luta contra esses mesmos elementos e da dependência dos senhores, dos donos das terras, do morgadio e da subserviência umbilical à voz do patrão. Do Divino e do Sr. Padre e das sopas de cavalo cansado depois da jorna de pé descalço pelas canadas de cascalho fino e a bênção do padrinho e o sonho americano, lá longe nas New Bedfords e Fall Rivers de abundância. Talvez seja disso tudo e de sermos ilhas cujos sonhos estão limitados por água por todos os lados apenas com mar como horizonte. Ao longo da história foram poucos os progressistas que vingaram nesta terra, nem mesmo nesse período áureo do Liberalismo insular. E, é talvez paradigmático que o Santo Antero se tenha acabado, com dois tiros no céu da boca, sentado num banco, vencido da vida, no Campo de São Francisco, no cinzento dia de 11 de Setembro de 1891.

Nas ilhas, toda a segunda metade do século vinte foi marcada pelo conservadorismo e nem o 25 de Abril conseguiu incutir liberdade nas mentes fechadas e suspeitosas destes ilhéus. Se não era já o atavismo intrínseco das gentes era o medo dos comunistas, a quem era preciso dar sovas no aeroporto e incendiar as casas e atirar carros da ponta da doca. A dificuldade de implementação dos ideários socialistas nas ilhas deveu-se não só à inexistência de uma classe operária per si como, também, à mentalidade do agradecimento. A mentalidade do assalariado rural, que o leva a agradecer ao senhor da terra deixar-lhe cultivá-la, da empregada de casa que se consola com comida e um tecto e trata os senhores timidamente por menino e menina. E, o facto é que, em grande medida, essa mentalidade ainda hoje existe. Com o 25 de Abril, nada disto mudou. A única diferença foi que a máquina da autonomia mota-amarelista se substituiu ao morgadio e criou uma vasta plebe de funcionalismo público que passou a ver nos directores e secretários regionais o émulo burocrático dos Câmaras e dos Cabrais e outros sobrenomes que tais…

Como tenho dito sobejas vezes, Carlos Cesar não ganhou as eleições de 96 por ser uma águia política. Cesar saiu vitorioso dessas eleições, com um empate de mandatos, porque as pessoas estavam fartas do mota-amarelismo, ainda para mais porque, nessas eleições, este era servido em versão requentada. O que se passou em 25 de Outubro passado é muito similar, foi pelo cansaço e pela incapacidade de perceber esse sentimento que o PS, tal como o PSD antes, soçobrou. Mas, a verdade é que nem os socialistas conseguiram alterar o conservadorismo mental dos açorianos. Não conseguiram desagrilhoar as esperanças e as vontades e a voz aprisionada das pessoas que se vestiram de socialismo, como quem veste um xaile para ir de romaria, no dia seguinte à queda do mota-amarelismo, tal como agora o irão fazer, sacudindo o mofo do fato conservador, para na próxima semana se apresentarem na reunião de zoom do serviço cantando loas à nova primavera florida da AD açoriana. Os Açores são, foram e serão sempre conservadores. E o PS do culto autonomista e do autoritarismosinho e da incontida arrogância tem imensa culpa nisso. Só que agora, quem manda é a coligação das direitas enlaçadas…

E agora PS? A sensação que perpassa pelas mentes socialistas neste momento é como a de uma gravidez abortada. Havia um plano gizado, que preparava o partido para lá de 2024, mais quatro anos de Vasco Cordeiro, Chico Cesar engatilhado e aguentar até lá, só que esse plano falhou. Pior, falhou com estrondo. O estrondo de menos 5 deputados e uma Gaiola de Malucas de direita com uma maioria parlamentar. A culpa do que se passou não é do Nuno Barata, ou do maquiavelismo dos irmãos Nascimento Cabral, nem sequer do travestismo do Arturito da terceira. A culpa desta debacle eleitoral, que deixou campo aberto para que Marcelo desse o golpe de misericórdia via embaixador Catarino, a culpa, dizia eu, foi exclusivamente do Partido Socialista e é essa catarse que é imperioso fazer agora. Neste momento, e mesmo correndo o risco de o partido ficar órfão, Vasco Cordeiro terá de se afastar e fazer a sua travessia do deserto até às europeias de 24. Ser líder da oposição exige agilidade e jogo de cintura e, principalmente, capacidade de decisão rápida. Vasco Cordeiro tem muitas qualidades, mas nenhuma das anteriores. O partido tem que rapidamente perceber que o seu papel neste momento é liderar a oposição e não deixar, como já deixou, esse papel nas mãos do Bloco de Esquerda, que ontem instou, e bem, o Sr. Representante da República a tornar públicos esses ditos acordos escritos que mais ninguém ainda viu a não ser ele. E ainda dizem que isto é uma democracia e que quem manda é o povo. O partido não precisa de uma choradeira trumpiana sobre legitimidades estatutárias entre parlamentos e dignatários da república. O partido precisa de fazer política e fazê-la na oposição. O partido precisa de, na sua nova liderança, mais do que encontrar um líder sebastiânico, que o salve da presente orfandade, fazer valer o valor do seu vasto capital de experiência governativa para constituir uma equipa dirigente, quase como um governo sombra, que possa não só compensar as claras fragilidades do seu grupo parlamentar, como, pasta a passa, dossier a dossier, fazer a fiscalização e a oposição constante a uma coligação de direitas que passada a epifania do ódio ao PS não terá mais cola que a una nessa imensa crise que ai vêm. Internamente é, também, imperioso que o partido faça as pazes com o seu passado. Isso passa pela alteração da norma estatutária que dá poderes executivos ao Presidente Honorário, retirando-lhe as competências que detém na Comissão Regional e na Mesa do Congresso, deixando-o apenas como honorário. Passa também por Francisco Cesar e Sérgio Avila reconhecerem que foi em São Miguel e na Terceira que o partido foi mais fortemente penalizado, tanto em perda de votos como de mandatos. Francisco Cesar é uma jovem promessa política, mas para efectivar esse capital terá de se saber autonomizar da figura opressiva do pai e demonstrar, mais do que qualquer outro, que esse capital político é legitimamente seu e não apenas uma emanação da autoridade paterna. Isso passa por fazer, também ele, a sua travessia do deserto, deixando o secretariado de ilha e, obviamente, a liderança do grupo parlamentar, quem sabe até por passar um período na capital, junto de Pedro Nuno Santos. Só assim se poderá revitalizar a democracia interna e a liberdade de pensamento do partido, que serão para o futuro fundamentais à sua vitalidade. Não o fazer já é hipotecar não só as próximas eleições autárquicas como dar por certo um novo ciclo de 20 e tal anos de políticas reaccionárias no arquipélago e um longo deserto de oposição tão ou mais doloroso do que aquele vivido até a semana passada pelo PPD/PSD.

Se a liderança não o souber, ou quiser, fazer é bom que a militância o faça, porque o amanhã já é tarde e para a frente é que é caminho…

domingo, novembro 8

A Gaiola das Malucas

Se a apresentação da Aliança Democrática Açoriana já fazia lembrar a Gaiola das Malucas, a confirmação do apoio parlamentar do CHEGA! e da Iniciativa Liberal ainda tornou esta gaiola mais histérica, insana e colorida. Para quem não viu, La Cage aux Folles é um divertidíssimo filme franco-italiano, de 1978, que conta as aventuras de um casal homossexual, dono de uma discoteca drag na atribulada e glamourosa Saint Tropez dos inícios de oitenta. Por cá Bolieiro é Renato, o dono da boite, Artur Lima é Albin/Zaza, travesti e principal atracção do estabelecimento, secundado pela piriquete Estevão que vem na esteira a segurar as plumas e as lantejoulas no desequilíbrio dos tacões altos. Quais três amigos, para usar o adjectivo de escolha de Bolieiro, escanchados na mesma cela, cujos estribos são a curvatura útil de IL e CHEGA!.

Não me passaria pela cabeça pôr em causa a legitimidade democrática do casamento de conveniência destas cinco direitas (embora mais à frente possa debater a questão do posicionamento da IL no compasso ideológico…). O contar dos votos é a única legitimidade necessária em democracia e, logo no dia 25 de Outubro, se percebeu que este era um cenário não só possível como, até, o mais provável.

Mas, alguns aspectos fundamentais, nesta nova solução governativa regional, causam-me alguma, para não dizer muita, angústia. Em primeiro lugar, o casamento em si e com ênfase reforçada no aspecto da conveniência. Não há, como é francamente percetível, absolutamente nada que ligue estes nubentes. Ao longo dos anos, estes três partidos, foram dizendo uns dos outros o que Maomé não disse do toucinho. E, o caso mais extremo é mesmo o CDS de Artur Lima, que sempre preferiu andar aos beijos na boca ao PS a dar a mão ao PSD. O próprio facto singelo de os três partidos serem incapazes de apresentar um esboço que seja do suposto acordo que firmaram, que indique quais as linhas programáticas e de actuação do seu governo, mostra bem como é frágil este pré-acordo nupcial. Temo, que a própria lua-de-mel seja passada em discussões sobre a casa de que sogros vão passar o seu primeiro natal juntos (se a Covid deixar..). Mas, enfim…

Depois, e este é o aspecto mais grave, a ligeireza, a facilidade e a desvergonha com que, ébrios pela sede de poder, partidos ditos democráticos venderam a alma ao fascismo com a rapidez e o estrondo de um relâmpago numa noite de estio. Trazer para a esfera de influência governativa o CHEGA! é abrir os portões de uma barragem cujo diluvio terá consequências imprevisíveis. Podendo mesmo colocar em causa a solidez e o futuro do regime. Há, a este respeito, uma nota importante. Simpatizar, ou não, com o regime venezuelano não é propriamente a mesma coisa que propor uma revisão constitucional que visa acabar com a Terceira República. Muito menos é aceitável que se queira culpar a geringonça por se assentir negociar com uma força política que é anti-humanista, racista, xenófoba, autoritária e, o mais grave de tudo, anti-autonomista. Aliás, ou muito me engano ou o verniz desta frágil cristaleira governativa vai estalar exatamente nas exigências do CHEGA! que, não só são inexequíveis, como vão contra os interesses da própria coligação. Uma redução de deputados, numa região arquipelágica como os Açores, é uma autêntica miragem no deserto. Qualquer método que se use irá prejudicar ou as ilhas maiores ou as mais pequenas, já para não dizer que coloca em sério risco a elegibilidade dos partidos mais pequenos, basta lembrar a composição da nossa assembleia antes do círculo de compensação. Quanto à redução do RSI é não só uma proposta irrealista, surrealista mesmo, diria eu, dado o momento de grave crise economia e social que vivemos, como vai potencialmente destruir o tecido social de muitas freguesias açorianas, nomeadamente algumas onde o PSD tem forte implementação, como é o triste e já famoso caso de Rabo de Peixe, a freguesia mais pobre da Europa. Quem me dera ser uma mosca para assistir ao Carlos Furtado a ir ao Bairro do Caranguejo anunciar o fim do Rendimento Social de Inserção. Basta imaginar…

Relativamente à Iniciativa Liberal, confesso, desde já, a minha surpresa por este desfecho. Num tempo político em que as dicotomias entre direita e esquerda são cada vez menos uma preocupação dos eleitores, o facto de a Iniciativa Liberal ter caído do muro para o lado da direita é colocar-se a si um rótulo que será, no futuro, muito difícil de tirar. Por mais que se agite o esfregão de aço e se gaste frascos de detergente a IL açoriana perdeu a sua capacidade de ser fiel da balança e de conquistar, pela equidistância das duas bancadas ideológicas, autonomia de fiscalização, reivindicação e propositura e perdeu, também, o reconhecimento de um eleitorado que acredita em causas e não em guerras e arranjinhos político-partidários. Por mais que o objectivo de retirar o PS do poder, aliás o ódio ao PS é a única cola que une estes cinco partidos, por mais que fosse uma ambição legítima, a forma como foi feito e o grupo de interesses que foi preciso unir, para não dizer os sapos políticos que foi preciso engolir, terá sempre tendência para esvaziar o potencial de crescimento da IL no futuro, tornando-a numa força política personalista, centrada na imagem do seu líder, o meu querido amigo Nuno Barata, o que, julgo eu, não só vai contra a matriz ideológica da IL como, até, à sua pratica política, veja-se a atitude, nobre, de Carlos Guimarães Pinto na noite das últimas legislativas nacionais. 

E as pessoas? Pergunta quem sobreviveu até aqui. Bem, nós, os eleitores, os que votam e os que não votam, cidadãos do dia-a-dia, para usar uma expressão americana, pagadores de impostos e cumpridores de confinamentos e recolheres obrigatórios ficamos a braços com uma sociedade profundamente polarizada e crispada. De um lado uma máquina partidária e governativa em estado de choque e do outro um bando de exércitos sequiosos de derrubar do poder instalado e substituí-lo por si próprios. A forma como esta transição for feita, talvez mesmo mais do que as escolhas políticas ou pessoais, ditará tudo sobre o futuro da região nos próximos anos e, nunca é de mais dizê-lo, é bom que todos tenhamos consciência que estes são tempos, pela gravidade e profundidade da crise que vivemos, de união fraternal e não de ódio fratricida. No meio, sempre no meio, é que se encontra a virtude e será na escolha entre a destruição do passado ou no aproveitar do que de bom e menos bom foi feito que se verá a nobreza de carácter e a firmeza de princípios de quem agora chega aos destinos da região.

Apenas um de entre tantos exemplos. Depois de tudo o que Paulo Estevão disse sobre o GACS será interessante perceber qual será a escolha deste governo relativamente ao futuro do mesmo. Apagá-lo. Melhorá-lo, fazê-lo evoluir como instrumento de informação e de apoio a uma comunicação social livre e plurar, comunicação social essa que está nos cuidados intensivos e em fase terminal, ou pelo contrário, qual Golem segurando o precioso anel, vai antes exponenciar a sua vertente de propaganda ofuscando assim uma sociedade que vai precisar, mais do que nunca, de pensamento livre…

Depois, ainda há o PS mas, isso fica para mais tarde…