Quando se reduz a tragédia a um punhado de estatísticas, fazemo-lo com a intenção de esquecer o humano. Por vezes, a única maneira de ultrapassar o horror é racionalizando e politizando. Perante milhares de desalojados, centenas de mortes, abstemo-nos do sentimento provocado pelas imagens para buscarmos no jogo filosófico da retórica uma solução para o inimaginável. Não há problema nenhum nisto, é a maneira das pessoas resolverem os problemas, criando novos problemas. Se alguém morre a emoção da perda é ofuscada pela burocracia de encontrar um caixão.
O problema com a América é a sua identidade desmesurada, tudo nesse país é enorme. Esse é também o nosso, dos Europeus, principal problema com a América. Eles são grandes, nós ambicionamos ser grandes. Quando discutimos a reacção política dos diversos governos americanos - cidade, estado, federação - imbuídos de uma embriaguez esquerda-direita, esquecemos o essencial, e o essencial aqui é a força da Natureza. Por mais preparados que estejamos, por melhores que sejam as tecnologias, as economias, os exércitos, nada pode nada contra as forças do Universo. E esse é o principal problema do homem consigo mesmo. Nós não somos nada perante o Universo. E na catástrofe só nos resta enterrar os mortos e ajudar os vivos.
Num país enorme como é os EUA, também as desigualdades sociais são enormes. O que aconteceu em New Orleans, antes, durante e depois do Katrina, é um problema político, mas é antes de mais um problema de cultura, de sociedade, de civilização. Já há vários anos que vários especialistas avisavam para os riscos que esta cidade corria em termos de erosão e de instabilidade costeira, e o aviso foi feito exactamente por causa dos furacões, era previsível que algo acontecesse, então o que leva a que as pessoas e os governos não se protejam e tenham que remediar depois da tragédia? (Há aqui um óbvio paralelo com a nossa "pequena" realidade dos incêndios, o que leva que ano após ano seja preciso remediar o que já se sabe que vai acontecer?) A nossa capacidade de menosprezar a força dos elementos exteriores ao nosso controle, e a nossa vontade de não nos preocuparmos com eles, é ilimitada. Vivemos tempos de auto-exclusão, em que o interesse individual se sobrepõe violentamente ao interesse das comunidades. Mas, será que não foi sempre assim ao longo dos tempos, não esteve sempre o homem à mercê da sua própria incapacidade de compreender a sua impotência face ao Universo? Quando perguntamos em ignorância como algo parecido pode acontecer na nação mais rica e desenvolvida do mundo, estamos a querer esquecer que tal acontece em qualquer parte do mundo com consequências igualmente devastadoras e a única maneira de nos protegermos é respeitando os elementos.
Talvez se pudesse começar respeitando as pessoas. O que aconteceu em New Orleans não é um problema de raças, mas de humanidade e do planeta em que todos vivemos.
Sem comentários:
Enviar um comentário