quarta-feira, junho 10
o estado da região
sábado, junho 6
diário da descontaminação
E eis que ao
octogésimo segundo dia o bicho deixou de constar da folha estatística diária. Naturalmente
que ele ainda anda por aí, silencioso e invisível, assintomático, como se usa
agora dizer. Mas, como não dá positivo nos testes a região soergue-se em júbilo,
como se o próprio Jesus tivesse descido à terra. Nas redes sociais, nas capas
dos jornais, nas infelizes composições laudatórias com que os partidos tentam
tirar partido da insignificância do número e nessa idiótica viagem que o hiperativo
e sempre sorridente presidente Marcelo decidiu fazer, de relâmpago, à décima
ilha, para compor, ainda mais, o ramalhete mediático da sua permanente campanha
eleitoral. Todos se extasiam em orgulho insular e autonómico. Depois do “orgulhosamente
sós” e do “queremos isto tudo fechado” agora temos o “somos os primeiros” da
corrida ao casos zero. Perdoem-me que não acompanhe o coro histriónico de
contentamento, mas para mim é-me difícil acompanhar o jubilo. Daqui, do fundo
do poço, é difícil ver o regozijo. Perante o imparável e crescente avolumar da
pobreza, das falências, do desemprego, do dantesco inferno económico e social
que estamos, e que vamos por muitos anos, viver é difícil considerar que, 160
casos depois, possa haver grandes alegrias no simples facto de haver uma folha
limpa no relatório diário do laboratório de análises. E, esse é talvez o maior drama
desta crise, a miopia. Desde o seu início que as Autoridades olharam para o
Covid-19 como um problema exclusivamente clínico, ignorando os multifacetados impactos
da pandemia, e das suas acções enquanto decisores políticos, no conjunto da
sociedade e da economia. O vírus, mais do que um problema sanitário, era um
problema comunitário, como muitos se irão agora aperceber, da forma mais
dolorosa possível, quando a grande curva da depressão económica se agigantar sobre
as nossas vidas, sem remédio que a achate. Mas, aos políticos, que no final do
dia são sempre os principais responsáveis, por mais que digam que o inimigo
veio de fora, tentando esconder o simples facto de que o vírus não toma
decisões, aos políticos, dizia eu, interessa apenas o espírito do momento, a
espuma do dia, o que importa agora é cavalgar a folha limpa da descontaminação.
Só assim se explica que os mesmos que há pouco mais de quinze dias zurziam os
tribunais porque haviam aberto a porta do nosso santuário insular à peste
estrangeira, sejam agora os maiores promotores da descovidização à força de
prémios fajutos de associações questionáveis. No meu tempo, estes pueris galardões
custavam dois mil e quinhentos euros e, se na altura já era duvidoso o racional
do dispêndio de euros, agora então, que não existem mercados, tal não passa da
mais básica e condenável campanha política interna. A dura realidade é que,
como recentemente se viu numa sondagem, mais de 60% dos portugueses não vão
fazer férias fora de casa e, para contrariar isto, não há nem teste nem best
que nos valha…
quarta-feira, junho 3
Processo de Covidização em curso...
Para muita gente,
por esse mundo fora, esta grande crise do Covid tem potenciado o ensejo de um
radical cambio civilizacional. Há como que um desejo latente e profundo de que
a humanidade se possa regenerar, possamos salvar o planeta, criar prosperidade
para todos e inventar uma nova utopia social de alegria, paz e amor. De repente,
no abrir de portas do desconfinamento surgimos todos na rua com o discurso da
Miss Universo. Cerca de 200 anos depois do alvor da Revolução Industrial
acordamos todos a citar Engels e Marx e a pugnar por um mundo onde o capital não
seja a força maior da opressão do homem. E assim vamos, em busca das novas
Itakas do bem-estar e da redistribuição equitativa da riqueza. Remediados de
todo o mundo uni-vos, contra os Gates, Bezos e Zuckerbergs da vida marchar, marchar!
O problema é que nem o mundo se transforma com tanta facilidade, nem tudo o que
conquistamos com o desarolhar do capitalismo ocidental é, necessariamente, mau.
Atente-se, por exemplo, o caso do Turismo. O Turismo foi, indiscutivelmente,
uma das grandes conquistas civilizacionais do mundo moderno. Se as Descobertas
deram novos mundos ao Mundo, o Turismo deu Mundo às pessoas e deu pessoas a
esses muitos mundos que compõem o nosso Mundo. Podemos argumentar, e serei
sempre o primeiro a defender esse argumento, que muito de pernicioso adveio das
actividades ligadas ao Turismo: a massificação, a poluição, a gentrificação, a
disneyficação, entre muitos outros palavrões sinónimos da desregulamentação e alienação
global provocada pela voragem desenfreada do Turismo selvagem, feito de turistas,
passe a redundância, em vez de viajantes. Mas, como disse Santo Agostinho, “o
mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas a primeira página.” E
nada promoveu mais a verdadeira democratização desse conhecimento do que a
Indústria do Turismo. Desde as primeiras linhas de caminho de ferro de 1800 aos
luxuosos long range da Emirates a circulação, mais ou menos acessível, de
pessoas pelo mundo todo foi um dos mais importantes fenómenos culturais da
modernidade. A democratização das viagens trouxe conhecimento, abriu horizontes
e, fundamentalmente, criou uma globalização de empatias e de afectos humanos,
para contrabalançar a essa outra globalização, a globalização fria e repugnante
do vil metal. Só que, de um dia para o outro, o Covid-19 destruiu tudo isso. Aeroportos
fechados, milhares de aviões no chão, companhias aéreas falidas ou em vias
disso, ao que acresce a estúpida tendência de querer transformar hotéis em
enfermarias e restaurantes em cantinas de hospital, com seis desinfecções por
dia, ditaram a morte do Turismo tal como o conhecíamos. Neste momento, há duas
forças em conflito na batalha pela “nova normalidade” do Turismo: de um lado os
que procuram, a todo o custo, retomar, reabrir, repor, custe o que custar, sem
demoras e sem, principalmente, ponderação e bom senso. O exemplo mais
paradigmático desta corrente é a aviação, que contra qualquer grama de sensatez
e, até, ao arrepio da espectativa dos próprios passageiros, procura, à força,
encher novamente aviões. Do outro lado estão os novos nacionalistas, defensores
do fecho total das fronteiras, e os puristas da new-age, que advogam um regresso
ao paleolítico humano, feito de vestes de cânhamo e psicadélicas viagens espirituais
pelo Éter da nova eco-globalização. Resta saber se, no meio deste yin-yang conceptual,
o simples gesto e o prazer íntimo de viajar, de absorver o mundo com os nossos próprios
corpos e emoções, se conseguirá salvar. Resta saber se o mundo que aí vem será
feito de e com pessoas, ou, apenas, de autómatos mascarados, desinfetados e devidamente
posicionados nos 2 metros de distância. Como diz a outra senhora – festejem os
golos, mas baixinho…