terça-feira, outubro 25

...Ironic

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No glittering da brilhantina e dos debochados casacos de cabedal, justos como uma segunda pele de látex, enquanto Olivia Newton se fundia nos quadris de John Travolta ele, pelo canto do olho, e no escurinho do cinema, tinha uma involuntária aula prática de iniciação à luxúria. Exagero óbvio ! Mas isso apenas o saberia muitos anos mais tarde quando ligasse os pontos ao passado. Mas à data, naquela matinée que lhe tinha caído em repeat, sob uma trunfa platinada e punk antevia a fogosidade do olhar dela e o desdém com que o observava. Um homem também em tempos foi um "puto" e as suas circunstâncias, e naquelas, ele mais não era do que o "empata" que refreava o ímpeto dos amantes com os seus olhares curiosos e inquisitivos. Tudo isto numa matinée inocente sem suspeitar que, à mesma hora, era possível que a geração dos seus pais se preparava para fazer turno na fila para outra fita...mas "rigorosamente interdita a menores de 18 anos" !


Numa terra de "santos" – (e outros tantos "pecadores") - ali ao lado no Cine São Pedro, depois dos "Canhões de São Sebastião", com Anthony Quinn, em matinée não aconselhável a menores de 13 anos, outras peças de artilharia ficariam em sentido, com sessão dupla, do "Garganta Funda" na soirée a dois passos daqueles preliminares tão pueris. Sim só o podiam ser quando por comparação, - e tudo na vida se mede por comparação -, quando a página do pasquim local, no cartaz das sessões de cinema, sob o título do clássico da malograda Linda Lovelace "advertia" : "avisamos o exmo público que este filme é imoral e pornográfico. Com este aviso não pretendemos fazer publicidade, pelo contrário, aconselhamos o público a não ver este filme. No entanto dentro dum conceito de liberdade, para aquele espectador mais exigente, apresentamos o filme com o objectivo de o levar a saber meditar naquilo que deve ou não deve ver". À escala da puberdade não lhe fora dado "saber meditar" sobre o que "devia ou não ver" !? Só se lamentava de não ver mais detalhes dos rendilhados dela quando


a tela do ecrã escurecia com uma passagem menos luminosa. Esse momento era a senha para que o par do lado, "dando-lhe sempre em quente", engrenasse a respectiva caixa de velocidades manual, dando prego a fundo até à curva mais próxima a cada segundo de escuridão que o túnel do cinema consentia. A anos-luz dessa penumbra tinha agora consciência do ridículo daquele teenager daydreaming, e não havia nada mais mainstream, como uma pastilha elástica, do que o "Grease" e o sonho de uma noite de verão americana. Entre discos perdidos encontrara a banda sonora do filme em duplo-vinil. Entalado entre outros discos de época, mais concretamente o "American Prayer", desse intemporal pregador dionisíaco que sempre seria Jim Morrison, e o "Parallel Lines", dessa diva da pop que sempre seria Debbie Harry, ambos de 1978, lá estava a banda sonora do "Grease". Morrison imortalizara-se aos 27 numa morte misteriosa, Debbie Harry desmazelara-se com a idade e fez um obsceno comeback com uma cançoneta em que, entre inanidades, repetia o mesmo refrão : "Maria...you got to see her" ! Patético e deprimente. Tão inútil quanto a banda sonora do "Grease". Porém, não era de todo inútil pois por um acaso, no invólucro de um dos discos, encontrou um recorte da Debbie Harry contemplando o esplendor da sua melhor juventude.


Resolveu acompanhar aquela imagem da "Blondie" com um bourbon...sem gelo como é de Homem. Arrumou o duplo LP com a pastelona banda sonora do "Grease" e meteu-a num envelope do correio que, no dia seguinte, endossaria para ela como um teaser para a memória daquela matinée. Subliminarmente atiçado pela "Blondie" viçosa, e não pela matrona rançosa que regressara "à vida" para compor as royalties da sua reforma, recordou-se daquele single catchy como um canto de sereia lançado na classe de 80. "Call Me" ! "Call me on the line/ Call me, call me anytime/ Call me my love you can call me any day or night/ Call me/ Cover me with kisses, baby/ Cover me with love...I’ll never get enough." Ummm ! O aguilhão da nostalgia picava-o e sentiu a crescer nele o desejo de lhe ligar. Atenuou o mesmo e fustigou-se com uma plangente "Sonata de Kreutzer" de Beethoven. Quando acabasse o bourbon, com ou sem "sonata", fecharia o envelope que lhe remeteria no dia seguinte por correio azul e selado, não com brilhantina, mas com a viscosidade da saliva agridoce aquecida pelo shot de Jack Daniels em saúde e memória à Debbiezinha. "Oi Debbiezinha...lembra do animal ?" Damn ! Essa era outra canção, dum tal Gabriel o Pensador, rodopiando no carrossel da sua memória, mas em fundo, num mashup inconsciente, ficara no arquivo do soundcloud a pancada dos Blondie a provocar-lhe : "Call Me" !
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Continua ?

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