Carlos Carreiro nasceu e cresceu em Ponta Delgada numa família com grande ligação às artes, às letras e às viagens. Recordo, a esse respeito, o seu bisavô, António José Raposo que, em 1857, aos vinte anos, embarcou à aventura num navio mercante, correu mundo e registou a sua passagem pela América do Norte, Madagáscar, China, Macau, Timor, Egipto e Inglaterra, entre outros. De regresso a Ponta Delgada, seis anos mais tarde, estabeleceu-se como fotógrafo e casou-se com uma das filhas de Cândido José Xavier, pintor e cenógrafo responsável pela decoração a fresco de alguns palacetes e pela arte cénica do então recém-inaugurado Teatro Micaelense.
Após várias intersecções que seria exaustivo elencar, embora não possa deixar de mencionar a avó e a mãe do Carlos, Angelina e Ana Vitória, ambas possuidoras de amplas qualidades artísticas, sobretudo no campo da pintura decorativa, e o seu pai, Manuel Carreiro, jornalista, escritor e proprietário do Diário dos Açores, passados cento e cinquenta anos da equação inicial, encontramo-nos, precisamente no Teatro Micaelense, para falarmos de um elemento que surge desse legado: as crónicas de viagem de um artista plástico. E, porque de um artista plástico se trata, aqui analisado na categoria de autor, vou começar por me deter nos aspectos visuais do livro, primeiro com um pequeno aparte a dar nota positiva ao design gráfico do miolo e da capa, fruto da criatividade e apuro do Vítor Marques e do bom gosto da Maria Helena Frias, responsável pela editora Artes e Letras e autora da Nota Editorial.
Ao folhear este Viagens de Um Artista Enquanto Jovem, gesto natural a qualquer apreciador de livros em papel, logo me deixei seduzir pelas ilustrações inéditas, seis no total, e me lembrei da máxima de outro artista plástico com a qual me cruzei na leitura da sua biografia. «Não pinto o que vejo, mas o que vi», dizia repetidas vezes o norueguês Edvard Munch para salientar o peso vital que a profundidade da memória imprime ao transitório e como o transforma em recordação intemporal. Elaboradas em 2021, as ilustrações do Carlos sobre a época em que escreveu as crónicas, há mais de cinquenta anos, são servidas ao leitor sob a forma de referências resgatadas à memória, recordações «sem qualquer ordem ou hierarquia», «fragmentos delirantes», para usar palavras do próprio artista, e podem ser lidas em linha com o que percebemos ser a forma do Carlos absorver informação e manifestar o seu entendimento do mundo, quer através da sua pintura, quer no que agora encontramos por escrito.
Sem querer estabelecer analogias entre a expressão visual e a escrita do Carlos, é impossível não encontrar uma conexão entre as duas, reconhecer uma fórmula comum, um estilo vívido, pormenorizado e satírico e bastante seguro da sua individualidade. Reparem nesta descrição da sua visita a uma mercearia de luxo na 5ª Avenida: «O americano aprecia bastante ofertas de flores e frutos, pelo que se viam nessa mercearia cabazes com pirâmides de toda a espécie de fruta, coberta de celofane, laços coloridos e flores plásticas, pronta a ser oferecida a uma sofisticada dama de peruca loura, que receberá a oferta em robe de plumas, recostada num leito de posições comandadas electricamente, conforme a quantidade de cãezinhos brancos que se enroscam aos seus pés quando ela vê televisão, sugando whisky num copo dourado que toca música quando se inclina». Nem só de tiradas delirantes vive a prosa do Carlos. Pelo contrário. Estas crónicas do jovem artista, escritas entre 1967 e 1970, embora pinceladas com humor, são sobretudo um documento sério, uma montra para um tempo cristalizado no nosso imaginário colectivo, um tempo de rapidíssima mutação social e cultural, um tempo de utopias, de slogans grafitados por todo o lado, de liberdade de costumes, de revolução sexual, da pílula, da minissaia. Fora da ilha plácida e ruminante e do cinzentismo da cidade do Porto, onde habitava, há todo um mundo a cores que o autor nos descreve com a espontaneidade e o entusiasmo próprios da sua idade e de quem descobre «outras realidades no mundo que não têm nada a ver com os bailes do Clube Micaelense, nem com as aulas de moral do Padre Rebelo no Liceu de Ponta Delgada, até mesmo com as aulas de dança do Sr. José Bento ou as coroações do Espírito Santo.»
Uma imensa curiosidade, viagens com a família ao norte da Europa na infância e juventude, livros, discos, revistas, cinema, dois anos em Direito e outros tantos em Belas Artes, são componentes essenciais da formação do Carlos, e permitem-lhe experimentar o novo perfume do Velho Continente e «o futuro que se adivinha na América» com um espírito altamente observador e crítico, assim como ter maturidade suficiente para tudo assimilar e expor ao leitor com singularidade, fluidez e convicção. Declarações como as que escreveu no catálogo da sua primeira exposição em Ponta Delgada, em 1968: «Eu pinto só para mim e não tenho a preocupação de fazer o que se convencionou chamar arte de vanguarda (…) Hás de vir ver a minha exposição se tiveres interesse…» e, no ano seguinte, em Amesterdão a propósito de uma visita guiada de meia-hora ao Rijksmuseum: «Como eu não estava interessado em andar a correr no museu a ouvir explicações convencionais que não ensinam nada, pelo menos a mim, desliguei-me do rebanho e fui ver à minha maneira», concorrem para nos dar uma boa chave de leitura e para traçar o retrato de um artista/autor bastante autocentrado, com um posicionamento artístico e humano que foge a convenções ou inibições de qualquer espécie.
Sendo certo que a crónica é um género que promove o encontro do autor com o leitor num registo mais descontraído e familiar, não é menos certo que a visão do primeiro se encontre, aqui, exacerbada, quer pela naturalidade do discurso, algumas vezes próximo da oralidade, quer pela intensidade da personalidade do Carlos Carreiro, ou, se quisermos, da marca Carlos Carreiro, já bastante definida apesar dos seus vinte e poucos anos. O Carlos pinta para si, fala para si, escreve para si. Pensa pela sua cabeça. O roteiro é dele, a opinião é dele, a linguagem é dele, o sentido estético é dele. Não há qualquer dúvida quanto a essa abordagem. É, pois, à sua maneira, que nos conduz através de Paris, Nova Iorque, Amesterdão, Londres e Filadélfia, impondo uma visão abrangente que oscila, de um modo geral, entre o deslumbre e a crítica feroz.
Se Paris é «a todo o momento um espectáculo, a Cidade-Luz, a mais bela do mundo» que fica «no coração, no cérebro e nos olhos» com as galerias, «as montras, o movimento, os parisienses, as figuras exóticas», é também motivo de saturação por, ao fim de uns dias, se encontrar «sempre os mesmos nas ruas, como que ensaiados e vestidos para representar no palco (…) para turista ver». Se Nova Iorque é «inesperada, radiante, resplandecente, viva de cor e luz de amor e paz», «deliciosamente louca», o principal exemplo do novo mundo Pop, é também a cidade dos «longos bancos de jardim, repletos de farrapos humanos, figuras escanzeladas (…) expectantes da morte como única libertação». Se Amesterdão é «cheia de requintes, como uma velha dama carregada de rendas e jóias», um lugar «tão poético» que «até parece cenário montado», é também a cidade das «insólitas» ruas «de casas de tolerância, onde mulheres estão expostas sentadas nas montras em trajos reduzidos, como presunto ou carne para consumo no talho». Se Londres é «uma urbe majestosa (…) que transpira «dignidade e solidez», «loucura e excentricidade», por onde circulam belas e requintadas «mulheres com casacos até ao bico do pé e chapéus enormes à gaúcho», é também o lugar onde «qualquer saloio pode chegar (…), ir a Carnaby Street e, em menos de uma hora, sair de lá como «um hippie inconfundível, desde a cabeleira postiça ao traje». Se Filadélfia é «lindíssima» com os «mais belos exemplos» de edifícios «dos estilos colonial e neoclássico», em harmonia com outros de traçado nórdico e arranha-céus, é também tão postiça como o Independence Hall, «uma casa sem qualquer interesse, restaurada e toda pintadinha de fresco, onde só é da época de George Washington uma cadeira e um tinteiro».
Para além de considerações generalistas sobre a envolvência espacial e social, a automatização, a moda, a mulher, os hippies, a condição dos negros, a guerra do Vietname, a homossexualidade, a ciência, o cinema, a literatura, assim como de relatos cintilantes sobre espectáculos de música e de teatro, transversal a todas as cidades um único ponto ressalta: o magnetismo dos museus e galerias de arte, fonte de deslumbramento e emoção, de descoberta e «certificação» de conhecimentos. Do Louvre ao Guggenheim, das obras clássicas às emergentes da cultura Pop, nada escapa ao crivo do artista, nada foge ao seu ângulo de análise entusiástica, nem os muitos que aplaude, nem os poucos que vilipendia. Para o Carlos, o museu é «o organismo cultural com maior força e importância junto do Homem», um lugar de consolo, quase sempre adjectivado como «deslumbrante». A sensação de deslumbre, de plenitude do Homem perante a Arte, transborda das páginas de Viagens de Um Artista Enquanto Jovem, de tal maneira que o leitor se sente recompensado pela partilha do autor, no fundo, por poder usufruir no conforto do seu sofá desta experiência, uma verdadeira visita guiada. O Carlos leva-nos pelas salas de alguns dos museus mais importantes do mundo e, com ele, entendemos o «espírito austero» da escola alemã, o carácter «explosivo» da espanhola, a «cortesia e poesia» da francesa, a «falta de interesse e vulgaridade» da inglesa, com ele acompanhamos o «refinamento de cor e luz» de Degas, emocionamo-nos com o «calor humano e sensualismo» de Renoir, ficamos sem palavras em frente à «etérea memória» do nevoeiro matinal dos Nenúfares de Monet, e comparamos a representação do «Homem na sua aflitiva solidão» em Rembrandt, Giacometti e Bacon. Com ele mergulhamos, sobretudo, num turbilhão de impressões sobre os contemporâneos, na «excentricidade e imaginação diabólica» de Salvador Dalí, no «realismo fotográfico» de Gerard Richter, nas «esculturas orgânicas» de Henry Moore e Hans Arp, na «pintura de impacto» de Roy Lichtenstein e na espiral do «castelo fantástico» de Frank Lloyd Wright.
Apesar contarem mais de cinquenta anos, as crónicas do Carlos, segundo o autor «mais impressões de um pintor do que de um jornalista», continuam frescas, dinâmicas e actuais. Têm, no entanto, uma particularidade diacrónica que gostaria de salientar, por me parecer curiosa e sintomática da época em que foram escritas: ao longo das duzentas páginas deste livro, há uma única referência a uma artista plástica, a escultora inglesa Barbara Hepworth, ficando de fora nomes tão importantes como Méret Oppenheim, Georgia O’ Keefe, Lee Bontecou e Louise Bourgeois, talvez por estas e outras artistas mulheres não estarem devidamente representadas nos museus que o Carlos visitou, algo que, em tempos mais recentes e um pouco por todo o mundo, tem vindo a ser corrigido, através da reformulação das colecções e atribuição de mais espaço expositivo ao sexo feminino.
Termino com uma palavra de imenso respeito pelo prefácio. Escrito pelo Carlos Riley com a sabedoria e a elegância que lhe são características, resulta numa peça fundamental para o leitor, pela síntese que apresenta do autor, do tempo e do modo como surge este livro.
Apresentação @ Teatro Micaelense, 23.04.2022
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