Olho pela
janela, na direcção do mar, o céu azul, o sol pálido da luz da manhã, quase que
não se vêem as cinzas do mundo que acabou de desabar. Quase se diria que nada
mudou. A esta hora estaríamos a terminar o serviço dos pequenos almoços, os hóspedes
fariam perguntas sobre os trilhos, as distâncias, um miradouro, um restaurante,
o melhor peixe. Terminaríamos o serviço dos quartos, a ronda pelos emails, os
pedidos de reservas, que agora não são mais do que repetidos alertas vermelhos
de cancelamentos, cancelamentos, cancelamentos. Perguntas que se transformaram
em pedidos de informação, se há voos, se estamos abertos, explicações sobre as
restrições, as quarentenas, tentativas frustradas de traduzir para inglês portarias
que nem em português são inteligíveis. Orientações descabidas de Autoridades
que não sabem, ou não querem perceber, que o Turismo é a arte de bem receber e
não a da Xenofobia. Que um hotel não é uma enfermaria. Que para fazer um almoço
é preciso vender cinco. Que não há açorianos suficientes para encher os hotéis
de São Miguel e que os continentais, que eles enxotam são, sempre foram, o nosso
principal mercado emissor. E, quanto mais tarde se aperceberem disso, já todos
foram para o Algarve, para o Gêres ou para o sudoeste Alentejano. Mas, tal como
os “apoios” do Governo, também o sol é enganador e o mar sem ondas esconde a
verdadeira tempestade. O Mundo todo à nossa volta mudou, mesmo que no covil do
desespero alguns queiram, à força, regressar a essa errónea “nova normalidade”.
quarta-feira, maio 27
segunda-feira, maio 25
Manual de Simpatia
Voltemos, então,
às metáforas bélicas. Nesta primeira grande-guerra do Covid, a primeira vítima,
passe a repetição, foi o Turismo. Qual soldado raso de infantaria, o Turismo
foi o primeiro na linha de fogo. Companhias aéreas, agências de viagens, hotéis,
alojamentos, animação, restaurantes, tuk-tukes, e tantas outras actividades
conexas, foram os primeiros a ser lançados na trincheira do confinamento e a
sofrer o ataque, inclemente, dos obuses do distanciamento social. Neste admiravelmente
asséptico “novo normal”, a Indústria da Hospitalidade é, ela própria, uma
impossibilidade, um anacronismo, para o qual olharemos com saudade ou
estranheza. Num tempo que nos obriga a andar de cara tapada, uma actividade cuja
mercadoria é o sorriso, cuja moeda de troca é a cortesia, não tem, digamos
assim, viabilidade económica.
Mas, seria injusto
apontar culpas directas a um determinado governo pelo súbito colapso desta Indústria.
Não foi só um ou outro Estado, ou região, que se fechou sobre si próprio. Foram
todos os países ocidentais que, de um dia para o outro, suspenderam aquilo que
era o oxigénio do turismo mundial – a livre circulação de pessoas. Porém, há,
obviamente, diferenças, nuances, de país para país, de região para região, quer
no grau de preocupação, como na rapidez do auxílio ou, até, na atitude geral
para com a necessidade, para não dizer a vontade, de reinventar o sector.
O caso dos
Açores é particularmente paradigmático de como o autismo do governo cavou,
ainda mais fundo, a sepultura do Turismo. Fechados na sua bolha de preocupação
clínica, obcecados pela demanda de cobrir as ilhas num imenso manto de
descontaminação, Presidente do Governo e Autoridade de Saúde, tudo fizeram para
fechar, isolar e desinfectar os Açores do perigo estrangeiro. Encerramento de aeroportos,
cancelamento de voos, quarentenas obrigatórias, quarentenas “voluntárias”, e até,
cúmulo dos cúmulos, apelos abertos e sem vergonha a que “as pessoas não se
desloquem à região”! Como se já não fosse bastante, para a eutanásia do
sector, a inadequação, insuficiência e, até mesmo, a clara injustiça dos parcos
apoios de Estado, que em muitos casos mais não eram do que certidões de óbito
encapotadas, o último prego no caixão foi, de facto, a forma como, com cada
palavra e cada gesto, os responsáveis políticos regionais, foram regando a
semente xenófoba que medra, mais ou menos timidamente, dentro de cada açoriano.
No que
concerne aos apoios, desde o seu início se percebeu que não passavam de um
eufemismo, para não dizer um logro. Pensos rápidos para tratar uma gangrena. A
tentativa, desesperada, de conter os despedimentos, com layoffs, e só até ao
final do ano, não visa proteger trabalhadores ou apoiar empregadores, busca apenas
garrotar as estatísticas do desemprego até depois das eleições. Para além de
que esquece todos os outros imensos custos mensais que sobrecarregam as
empresas, como, por exemplo, a conta da EDA que nos Açores chega a ser obscena.
Ou os custos de manutenção. Nestas ilhas em que a humidade se mede em metros
cúbicos e não em percentagem, bastam dois dias de porta encerrada para crescer
cabelo nas paredes de uma casa. Experimentem abrir uma porta no Nordeste depois
de três meses fechada, a humidade entra-vos pelas narinas como uma má
anfetamina. Por outro lado, incentivar o crédito a empresas já de si
endividadas ou, cereja em cima do bolo, limitar os apoios a um critério de ausência
de dívidas ao Estado, são tudo provas de como a última das preocupações deste
governo, desde o Palácio de Santana ao Alto das Covas, é ajudar o Sector do
Turismo. E, nem vale sequer a pena falar do Edifício CTT, onde, em total alheamento
da realidade em que estamos metidos, a Secretária da Energia, (que certamente
não leu a entrevista do Jorge Rebelo de Almeida ao Negócios, anunciando o
cancelamento do investimento do Grupo Vila Galé no antigo Hospital de Ponta
Delgada...) andava, ainda na semana passada, pasme-se, a enviar emails ao
Trade, perdoem o jargão, a pedir contributos para um manual de boas práticas, enquanto
todo o resto do país, Madeira na frente, já se prepara para abrir, se é que já
não abriu, ao Turismo.
No entanto, o
mais grave disto tudo, como se tudo isto não fosse já suficientemente dramático,
é, sem margem para dúvidas, esse sentimento generalizado que se disseminou pela
população, sustentado pelo discurso e acção do governo, de repulsa, renuncia e
pura antipatia para com os que são de fora, e que extravasa de cada comentário
a favor do isolamento geográfico das ilhas, como se este fosse, em si mesmo, uma vantagem
e não a fatalidade que realmente é. Numa região que até há pouco mais de 20
anos vivia enclausurada nos seus xailes negros, numa região que, mesmo entre si,
gosta de alimentar o odiozinho de ilha para ilha, numa região onde até há tão
pouco tempo o exemplo máximo de bom atendimento num restaurante era o “vás
comê e vás gostá”(!), nesta região, a postura conjunta da tríade Autoridade
de Saúde, políticos e (perdoa-lhe Senhor que ele não sabe o que diz) Cónego
Borges, em toda esta birra das ligações com o continente, deu cabo, quem sabe se
por muitos e bons anos, daquilo que é o bem mais precioso de um Destino, e não,
não estou a falar das belezas naturais ou da sustentabilidadezinha, estou a
referir-me à arte de bem receber, a pura, simples e genuína, afabilidade. Aquilo
que é, afinal, o ouro de qualquer Destino – a simpatia.
A simpatia, a hospitalidade e o bem receber,
não se recupera com carimbos sanitários, nem com luvas de plica e máscaras
comunitárias, nem com vídeos pseudocómicos com a Teresa Guilherme, nem sequer
com anúncios empacotados em aviões da Ryanair à saída de Ringway. Ninguém quer
ir a onde não será bem-vindo. E, foi essa mensagem – não queremos cá ninguém! –
que andaram, Vasco Cordeiro, Tiago Lopes, até José Manuel Bolieiro, a passar durante
estes dois meses e meio, mais o próximo que aí vem até ao início de Julho. A minha falecida avó, costumava dizer que "era preciso uma
vida para se construir um 'bom nome', mas que bastava um dia para o perder". Aos
Açores bastou um vírus com nome de cerveja. Que Deus lhes perdoe, a mim falta-me a
paz de espírito para perdoar…
sábado, maio 23
Do desconfinamento
Num artigo, na revista Scientific American, sobre a evolução
da pandemia de Covid-19, a epidemiologista e bióloga evolucionista da
universidade de Chicago Sarah Cobey declara que “a questão sobre como a
pandemia se desenrolará é pelo menos 50% científica e outros 50% social e
política”. No fundo, o que a ciência e a história de passadas pandemias nos
dizem é que na inexistência de uma vacina ou, havendo uma, da vacinação massiva
dos 8 biliões de seres humanos do planeta, o vírus irá tornar-se endémico,
circulando e infectando pessoas sazonalmente. Perante isto, a abordagem ao vírus
depende, em igual medida, dos avanços científicos, quer na criação de uma
vacina como, e mais importante, no desenvolvimento de medicamentos antivirais,
que permitam o tratamento, bem-sucedido, dos infectados. Como, também, dos
comportamentos sociais e das opções políticas. Neste aspecto, a questão do
sucesso das medidas de confinamento, como forma de ganhar tempo, depende, em grande
medida, do momento em que são impostas, pelos decisores políticos, e da sua
aceitação e cumprimento, pela população. No mesmo artigo, é admitido que as
medidas de confinamento foram mal sucedidas na Europa, ao contrário do que aconteceu em Hong Kong
e na Coreia do Sul, porque foram impostas tarde de mais. Ainda sobre medidas
de confinamento, Anders Tegnell, o já famoso epidemiologista sueco, em resposta a uma pergunta de Fareed Zakaria sobre se a opção da Suécia de não impor o
confinamento tinha sido por razões económicas, Tegnell respondeu, peremptoriamente,
que não, que essa opção era apenas baseada na percepção de que quaisquer medidas
que fossem tomadas, para controlar a epidemia, teriam que ser sustentáveis no
tempo, uma vez que a epidemia iria, como se pode constatar, prolongar por tempo
indeterminado. Tegnell é também extremamente explícito na afirmação de que o
seu papel é apenas de conselho, são os políticos que tomam as decisões, e não
ele. Nesta altura de mais ou menos desconfinamentos, vale apena pensar sobre
estas questões, agora que somos todos “suecos”. O confinamento e, por maioria
de razão, o isolamento ou, no caso açoriano, o grande fechamento das 9 ilhas,
não são um tratamento, são apenas medidas profiláticas, que teriam, tem, necessariamente
que ser tomadas por um curto espaço de tempo, sob pena de, como se constata, os
seus efeitos psicossociais e económicos serem ainda mais devastadores do que a,
felizmente baixa, taxa de letalidade do vírus. O confinamento não é mais do que
uma medida para conter a infecção permitindo, no entretanto, que os sistemas de
saúde, as organizações políticas e a sociedade, como um todo, se possam
preparar para a fase de disseminação da epidemia. Nos Açores, ao fim de
praticamente dois meses e meio de confinamento, não temos qualquer informação sobre
como o nosso sistema regional de saúde se apetrechou para efectivamente “combater
o vírus”, essa expressão que tantos os políticos como a Autoridade de Saúde,
essa entidade abstracta e de pulloveres coloridos, tanto gostam de usar. Não sabemos
se foram montados hospitais de campanha para tratamento exclusivo dos
infectados, libertando assim os hospitais para o seu funcionamento normal. Não sabemos
se estamos devidamente capacitados em matéria de equipamentos de protecção, medicamentos,
testes ou outros materiais imprescindíveis para o rastreamento e tratamento de pessoas infectadas.
Nem sequer sabemos que medidas especificas foram tomadas para os grupos de
risco, nomeadamente idosos, em especial os lares. Apenas sabemos que tivemos
146 casos confirmados de Covid-19 e 16 óbitos, sendo estes últimos
praticamente todos num lar de idosos no Nordeste. No entanto, ao mesmo tempo e
agora que vamos tateando no ar, vendados e a medo, o caminho do
desconfinamento, conseguimos todos pressentir que há um outro inimigo, igualmente
invisível e mortal, a crescer exponencialmente por entre os interstícios do
nosso tecido social e económico, o vírus da brutal crise económica em que o
confinamento nos mergulhou e do qual a morte por eutanásia governativa do
sector do Turismo é apenas uma pequena parte, embora a que tem, para já, maior
visibilidade e peso. E, pressentimos, igualmente, que, para esse outro vírus, para
essa outra crise, do chamado “novo normal”, o Governo dos Açores, continua a
não ter nem puta ideia do que fazer, só que agora com a agravante de que já não há “isolamento
profiláctico”, seja ele voluntário ou não, que o ampare…
sábado, maio 16
Equivalente ao espaço entre as orelhas...
Ao nosso redor o Mundo todo está a desabar. Por força dos múltiplos
confinamentos, isolamentos e tantos outros ditames da ditadura sanitária, a Economia,
desde a mercearia de bairro à grande empresa multinacional, travou a fundo,
projectando-nos violentamente pelo para-brisas, em direcção ao asfalto, como
passageiros sem cinto, no lugar do morto, de um carro na iminência de colisão. Lay-off,
desemprego, brutal perda de rendimentos e ausência absoluta de verdadeiras ajudas
de Estado, transformaram-nos em meros corpos ensanguentados, entre metal retorcido,
num acidente de estrada. No meio desta dantesca realidade, o PS Açores decidiu
fazer humor, publicitando nas redes sociais, com bonomia e um sorriso, pequenos
memes sobre distanciamento social. Confortavelmente abancados nos seus salários
em dia, os jovens assessores da vida partidária, (muitos deles transitaram
directamente dos recreios dos liceus para os corredores do poder)
entretiveram-se a plagiar imagens anedóticas, para ensinar os açorianos a
distanciarem-se convenientemente uns dos outros, com ícones da vida insular
como vacas, queijos, hortênsias e atuns. Esta palermice do PS-A é triste e
insultuosa, desde logo porque o PS-A não é uma associação de estudantes, nem um
grupo de comediantes, numa qualquer sala das Produções Fictícias, à espera de
se transformar nos Gato Fedorento, até porque, para isso é preciso talento. O
PS-A é um partido político e é o partido que governa os Açores. A exigência de consideração,
seriedade e de responsabilidade perante o momento que vivemos é ainda maior
para o Partido Socialista dos Açores. O partido que suporta o Governo da região,
no momento mais dramático das nossas vidas, não se pode comportar como um
adolescente imberbe, fazendo pouco das centenas de pessoas que viram as vidas suspensas,
ou até totalmente destruídas, por esta crise e, imperdoavelmente, das dezenas de
outras que perderam entes queridos nesta pandemia. Esta idiotice é inadmissível
porque não há piada, não há humor, não há sequer um pingo de riso no
confinamento forçado e no espectro fúnebre da pobreza que paira hoje, como uma
guilhotina, sobre a população. Esta verdadeira marie-anttoinetice é,
também, um insulto parvo e é-o porque trata os açorianos como imbecis que
precisam de desenhos para compreender a ideia de distanciamento social e este é,
provavelmente, o aspecto mais grave de toda este lamentável episódio. É que, a
ser assim, os responsáveis do PS-A, desde os seus jovens criativos, aos seus
históricos militantes, passando por “ilustres” dirigentes, não percebem que se
existem hoje nos Açores cidadãos que precisem deste tipo de mensagem para compreender
a gravidade do momento ou a seriedade das medidas a adoptar, tal só se pode
ficar a dever, única e exclusivamente, ao total e absoluto falhanço das
politicas educativas, sociais e económicas do próprio PS-A que, ao fim de 25
anos de poder, o tempo de uma geração, não conseguiu puxar para cima uma grande
fatia da população dos Açores, seja nos índices de pobreza como no nível de
escolaridade, ou na civilidade própria da mais básica cidadania. Estes memes, estúpidos
e fúteis, são como Nero, tocando a sua lira, enquanto Roma ardia…
terça-feira, maio 12
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Henry David Thoreau
(Daguerrotype. Worcester-Mass. 1856)
A maioria daqueles que estão familiarizados com a Desobediência Civil associa-a, geralmente, às figuras de Mahatma Ghandi e Martin Luther King sem ter porventura a noção de que o pai desta ideia ou, melhor dito, do termo em si mesmo, foi Henry David Thoreau que, na sequência de uma noite passada na prisão em Concord, Massachusetts, proferiu perante os seus concidadãos a palestra Resistance to Civil Government, depois publicada em 1849 sob o título Civil Disobedience.
Nos tempos que correm, em que o dito Estado de Direito foi sequestrado pelo Estado Sanitário, um filho improvável do Estado Securitário com que fomos brindados no início do século XXI, o ensaio de Thoreau é uma leitura assaz recomendável mas, infelizmente, este autor americano está pouco traduzido em português, uma língua de brandos costumes nada atreita a pensadores libertários. O povo português é de um civismo exemplar, conforme assegura ad nauseam o discurso político na sua habitual retórica, e dedica ao Estado uma devoção comparável à dos fiéis peregrinos de Fátima.
Thoreau foi preso porque se recusou a pagar um imposto, a Poll Tax, argumentando que a sua consciência não lhe ditava esse dever para com um Governo que, além de ter desencadeado de forma fraudulenta a Guerra do México em 1846-48, admitia a existência da escravatura nalguns Estados da União. Diz-se que quando um amigo o foi visitar à prisão e lhe perguntou – “O que é que fazes aí dentro?” – ele respondeu – “E tu, o que é que fazes aí fora?”.
O último reduto da dignidade humana é a nossa consciência e Thoreau ensina-nos, de uma forma exemplar, a sermos objetores de consciência. Não sou jurista nem especialista em Direito Constitucional, mas até um analfabeto sabe, no íntimo da sua consciência, que um Estado para ser respeitado tem que se dar ao respeito!
sábado, maio 9
O Sindrome Nanni Moretti
Como vários epidemiologistas têm dito só saberemos a real dimensão
e extensão da pandemia do Covid-19 quando esta terminar. Só aí se poderá fazer
o balanço exacto dos infectados, dos mortos, dos que escaparam ao vírus. Porém,
muito para lá da universalização da vacina e da OMS declarar o fim oficial da
pandemia, as ondas de choque sociais, económicas e políticas desta crise far-se-ão
sentir ainda, por muito tempo, como ecos de um vasto cataclismo. Se a caracterização
correcta da crise social e económica levará décadas, as crises políticas
provocadas pela “guerra” ao Covid-19, como gostam de dizer os políticos, são
já, de certa maneira, claras. Uma das principais consequências desta crise na política
europeia foi a forma como tornou evidente a incapacidade dos vários governos em
tomar decisões políticas com base em ideologias e em colocar em primeiro lugar,
não os seus, mas os interesses das comunidades. Com mais ou menos pequenas
alterações a resposta dos vários governos europeus foi ceder à pressão popular
e científica com a adopção de medidas de fascismo sanitário. Nem por um segundo
os governos hesitaram na aceitação deste caminho autoritário e a grande massa
dos cidadãos, levados pelo medo, aceitaram de livre e espontânea vontade esta
via. Perante a necessidade de medidas imediatas, não se esperaria que houvesse
lugar a referendos sobre a resposta ao Covid-19, mas seria legítimo esperar que
os diferentes governos reagissem conforme as suas diferentes colocações no
espectro político e isto, tendo em conta a resposta autoritária, é tanto mais
grave nos governos ditos socialistas. A necessária ponderação entre os valores
da saúde pública e a defesa dos direitos, liberdades e garantias era um
imperativo ético e moral, particularmente, para os governos emanados destes partidos.
Se as ciências médicas recomendavam uma resposta alicerçada maioritariamente no
distanciamento social e no confinamento o dever dos governos socialistas era
encontrar o necessário equilíbrio entre estas respostas e a defesa da liberdade
e a garantia das protecções sociais que defendessem os mais fracos e desprotegidos
dos efeitos cegos destas medidas. Aquilo a que estamos a assistir é a forma
como o súbito confinamento, seguido de um desconfinamento hesitante, estão, em
conjunto, a destruir a economia e o tecido social das nossas comunidades. Isto porque
a verdade é que esta crise não atinge todos da mesma maneira. Há, desde logo,
um fosso profundo entre sector público e sector privado. Entre ricos e pobres. Entre
população rural e urbana. Entre o interior, desertificado e envelhecido, e o
litoral. E o que se exigia a governos ditos socialistas eram respostas que
minimizassem estas diferenças, que atenuassem os efeitos devastadores do
combate à crise nos mais fracos e desprotegidos. Pelo contrário, o que assistimos
é a uma governação imediatista e mediatizada tomada apenas por respostas
impulsivas e avulsas. E, se as medidas de saúde pública são claramente autoritárias,
as medidas económicas são fundamentalmente não-sociais. É caso para citar Nanni
Moretti e, olhando para António Costa e, já agora, para Vasco Cordeiro, e pedir
encarecidamente – façam alguma coisa de esquerda.
domingo, maio 3
Ler
A Blind Girl Reading, Ejnar Nielsen, 1905, SMK, Copenhagen.
Com as livrarias fechadas e a circulação
condicionada, abastecemo-nos de livros com os subterfúgios possíveis. Este é o
tempo de remexer nas estantes e encontrar leituras proteladas ou esquecidas.
Este é o tempo de encomendar online ou ao livreiro amigo, de vigiar
o correio ou aguardar o toque da campainha. Este é o tempo de privilegiarmos as
pequenas editoras e livrarias. As que trabalham por amor à literatura e ao
livro. As que se alimentam e nos alimentam com proximidade e amizade. Sugiro
duas. Uma editora e uma livraria. A Companhia das Ilhas e a SolMar. Qualquer
uma delas preenche estes e outros requisitos. Qualquer uma delas nos oferece um
excelente serviço. Encomendas aqui e aqui.
sexta-feira, maio 1
Sobre a desumanização
Ontem, já mesmo no final da sua longa entrevista à RTP, em
que explanou os detalhes deste falacioso desconfinamento, António Costa
declarou, com ar blasé, que o chamado Estado de Calamidade, que vigorará a
partir das zero horas de Domingo, durará por tempo indeterminado. Com absoluta
indiferença e com uma naturalidade apavorante, o Primeiro-ministro deixou
escapar a grande verdade escondida desta pandemia: a completa e absoluta
desumanização das nossas vidas está aí para ficar. Isto, a que chamam de “novo
normal”, é o tempo do medo e do autoritarismo. Também, já há dias que um vídeo,
de uma participante no Prós e Contras, supostamente com uma mensagem de
responsabilização dos cidadãos face ao vírus, anda a causar furor nas redes sociais.
Na verdade, o que transparece dessas declarações é a frieza desumana como as ditas
ciências da vida olham para os Seres Humanos. Aos olhos da medicina não somos
mais do que portadores da doença, cada um de nós é um Uber da contaminação, um aspersor
de contágios, que nos saem pela boca, e que urge deter, confinar, isolar e mascarar. Ao
medo, os Governos, que sem vergonha se declaram socialistas, alcandorados nas
reuniões do Infarmed e na opinião avalizada de médicos, farmacêuticos, virologistas,
matemáticos e todo um outro arsenal de doutos cientistas e Autoridades
Sanitárias, responderam com choque e pavor. Com um regresso inexplicável à
idade das trevas e a um incompreensível e inadmissível fascismo higiénico. Ao
ponto de, a partir da próxima semana, as crianças, de todos os graus de ensino,
das afortunadas e descontaminadas ilhas de Santa Maria, Flores e Corvo poderem regressar
à escola, mas desde que devidamente mascaradas, desinfectadas e impedidas de ver
os sorrisos umas das outras. Nas creches, as educadoras terão que cuidar dos
mais pequenos de máscara, se calhar de luvas, coartando-se assim o acesso ao
mais importante de qualquer cuidado, o calor humano. Tudo para que os pais,
remetidos ao teletrabalho não tenham que as/os ter em casa. Também por tempo
indeterminado aqueles de entre nós que mais precisam de apoio e de cuidado, os
mais idosos, os doentes crónicos, terão de permanecer confinados, em isolamento
profilático, dizem eles, quando na verdade o que querem dizer é abandonados e
sós. Nos transportes públicos haverá multas para quem não usar máscara,
enquanto eles, os privilegiados, continuarão nos seus carros topo de gama, quem
sabe se com motorista, a olhar por detrás dos vidros fumados a queda no abismo
da multidão dos desprotegidos, os que ficaram sem trabalho, os que viram os
seus negócios fechados, os que foram deixados à sua sorte, os que perderam tudo.
Entretanto, os Governos, apelidando-se desavergonhadamente de socialistas, o
que dizem fazer é salvaguardar a sacrossanta “saúde pública”, o que nos querem
fazer crer é que estão a salvar vidas. Mas, que vidas são essas que dizem
proteger? Que Vida é essa se lhe retiram a mínima réstia de Dignidade? O que
fica da Vida se lhe proibirem o afecto, o abraço? Que vida pode haver sem direito
à Liberdade, sem Fraternidade, sem o dever primeiro e fundamental da Solidariedade?
Durante séculos, milénios até, milhões de pessoas deram as suas Vidas por estes
valores. Que sociedade somos nós hoje, que largamos mãos deles, que socialistas
são estes que, em prol da ditadura das estatísticas e das curvas e do número de
camas e ventiladores disponíveis nas UCI, governam sem honrar estes valores? Onde
nos devíamos juntar para proteger e cuidar, afastamos. Onde devíamos compreender
e ajudar, isolamos. Quando devíamos pedir ajuda, fechamos fronteiras. Tudo em
nome do superior interesse dessa concepção abstrata chamada Saúde Pública. Um
dia, saberemos que as vítimas deste vírus não foram os mortos, foi a nossa própria
humanidade.
Lunáticos (!)
Esta semana, à crença de que «a necessidade aguça o engenho», somo a compreensão de que ela, a necessidade, numa feliz expressão atribuída ao génio que foi Platão, é também «a mãe de todas as invenções», sendo que o plural é da minha responsabilidade, por questões que não importa agora aprofundar.
A (im)preparação, ante a surpresa, atrasa a humanidade, mas não a detém(!) e, não sei se bem ou se mal, lá nos vamos conseguindo reinventar, umas vezes pior e, sobretudo, outras vezes melhor.
Aflige-me, no entanto, a ideia de que, tal como o escorpião picou a rã numa conhecida fábula, também esteja na nossa natureza darmos cabo do planeta, nosso hospedeiro, ao mesmo tempo que damos largas aos instintos de sobrevivência da espécie, seja lá o que «sobrevivência da espécie» represente para uma ou outra estirpe.
Para os »marretas« que nunca se rendem ao vírus, a qualquer que seja, venham eles de onde vierem, deixo a recomendação de leitura do livro Lunáticos, de Safi Bahcall.
Não obstante uma determinada sensação de uma vivência sequencial da humanidade, a vida também acontece nas faixas paralelas. São elas que, nas nossas autoestradas, permitem as viragens à direita ou à esquerda e, quando necessário, as inversões de sentido de marcha também.
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