segunda-feira, junho 9

A utopia do Espírito Santo

Ao Sr. Amaro Matos que me acolheu em Sto. Amaro do Pico,
em dia de Espírito Santo.
Aqui a fraternidade dá esperança na Humanidade.
Vim a Sto. Amaro do Pico, a convite de Amigos, às festas do Espírito Santo. Houve crianças coroadas, houve sopas, houve festa e voltou a mim o bom e velho Agostinho da Silva.
Com fundações claras nas teses do teólogo místico Joaquim de Fiore, Agostinho da Silva constrói uma utopia já não mística mas eminentemente ideológica.
Fiore acreditava que a História se resumia a três tempos. O primeiro tempo era a Idade do Pai, do Deus barbudo e velho do antigo Testamento, cheio de relâmpagos e trovões, do “olho por olho, dente por dente”, de Quem a minha avó dizia ter medo que fosse Ele a abrir-lhe as portas do céu quando morresse... Depois veio o tempo do meio, a Idade do Filho, o nosso tempo, um tempo em que os Homens precisam de uma lei, de Governos, de trabalhar e de subsistir… à espera do paraíso, lá longe, no outro mundo. Na Idade do Espírito Santo, o terceiro tempo, os Homens irão construir o Paraíso na Terra, a Terra funde-se com o céu e não mais se saberá do ontem, do hoje ou do amanhã.   
Agostinho da Silva quer que a mística de Fiore possa ser transmutada para solução política: que o mundo possa ser construído como um projecto da humanidade em três tempos.
A prática religiosa e cultual do Espírito Santo nas ilhas dos Açores (e também no Brasil), e – mais do que ela – os fundamentos a ela implícitos, servem de substancia aglutinadora do seu pensamento. É, pois, assim que procura nas raízes profundas da nossa tradição três símbolos essenciais para evidenciar a sua ideologia sócio-política: Primeiro, a criança coroada, o menino imperador do mundo, o governo das crianças, como alusão a uma troca de valores metafísicos e ontológicos, cujas consequências em cadeia destronam a tradicional hierarquização dos saberes e dos poderes; Segundo, o prisioneiro liberto, como alegoria da libertação de todos os velhos cânones, das leis, dos Estados, das fronteiras… a assimilação completa do grande destino humano: a liberdade. Terceiro, o bodo, a fraternidade universal e plena, a partilha, a paz, a humanidade cônscia do bem no comum.
A utopia de Agostinho da Silva é muito bonita e paira sobre arquétipos da nossa História, buscando a universalidade no ecumenismo latente do paráclito, como única solução teleológica (e não teológica) de um futuro de paz, de fraternidade e de liberdade. 
Mas isto também nos dá uma espécie de grande tarefa: criar um mundo feliz para gozo dos Homens. Um mundo onde nos apeteça viver. Não vale a pena ter países, estados, regiões, leis e instituições se não for para isto.
Não nos podemos contentar em continuar apenas a colocar coroas na cabeça de meninos. Temos de evitar que crianças sejam maltratados como são, abandonados como são, vítimas de exploração como são… para que possam ser realmente imperadores do mundo quando vier esta futura Idade do Espírito Santo.
Não nos podemos contentar em dar um banquete a toda a gente de vez em quando. Temos é de fazer com que toda a gente coma realmente e todos os dias, tenha saúde, tenha educação e protecção na velhice.
Não vamos andar a libertar presos para que andem à solta um dia por ano. Mas temos de cuidar da liberdade como o único caminho de realização plena do ser humano.
Esta é a minha teimosa utopia... E a culpa, pelos vistos, é do Espírito Santo.


Santo Amaro do Pico, a 8 de Junho de 2014 

7 comentários:

Ibel disse...

Texto rico de sentido humanista e de fraternidade emergente.
Escreve-se e pensa-se bem por aqui.
Abraço

José Couto disse...

É o que nos anda a faltar por ai, Ibel: sentido humanista e de fraternidade emergente. Obrigado. Abraço

Anónimo disse...

Caro José Couto
Bem aja o homem que consegue no turbilhão destes dias, pensar e extravasar ideias, libertando-as da mais elementar necessidade de subsistência, para a criatividade teórica, para a organização de modelos de vida em comum, numa palavra, preocupação idealizada com a sociedade humana...
Não é só necessário recriar a culinária a partir da gastronomia regional é também necessário recriar a partir de fenómenos sócio, culturais, enraizados no Povo, para a partir deles compreender a nossa vida em comum e quiçá altera-la para parâmetros mais de acordo com preocupações humanitárias.
Gostei, como sempre uma pincelada que trás outra cor ao Ilhas, parabéns.
Açor

Anónimo disse...

Um texto soberbo, Ibel!

Anónimo disse...

Fraternidade emergente ao litro!!!


Açor,

Congratulo-o-o-o por este fantástico naco de prosa, também emergente.

Da culinária para a revolução...
Você deve ser mais anal do que Freud lui-même...

Enfie uma cenoura no seu rectum e sente-se no sofá. Talvez ajude.

Anónimo disse...

eu adoro a forma singular como o Açor consegue combinar palavras belas com palavras horrorosa...

ia tão bem: "para a partir deles compreender a nossa vida em comum e quiçá altera-la PARA PARÂMETROS..."

a isto chama-se cagar na lingua do Luís Barboleta Camões!!

não sou autor, nem escritor...mas..sei ler e gosto de ler...

oferece-nos uma pérola e, momentos depois, besunte-a com um muito mal cheiroso naco de bosta de felino...

irra.

a sua condição é grave: trata-se de um caso de flatulência semiótica.

use a cenoura multi-usos.

cordialmente,

Anónimo disse...

desde que o guterres foi PM que a barroquização da langage se transformou em prática comum...

césar, recordemos, tb era/é eximio nesta arte de pomponaria semântica...

jamais me esquecerei da: " democraticidade envolvente" e de outras inflexões intestinais...