quinta-feira, dezembro 22



(Ilust. de Cruzeiro Seixas)




Quando a realidade supera a ficção apenas dela nos conseguimos aproximar emocionalmente pela veia do surrealismo. O surreal que ilustra o absurdo e o desconcerto do mundo. Mesmo quando "esse mundo" é uma sala de espera, um "banco de urgência", uma "antecâmara" para diagnósticos da estação ou "secretaria" para inesperadas certidões de óbito colhidas de véspera. Observa-se com olhar de "documentarista" e aquilo não é um episódio da "Anatomia de Grey". Escuta-se com ouvido melómano e imagina-se que a banda sonora poderia ser surdamente decorada com uma partitura de Bartók.


Mas é apenas "uma sala de espera", com a "Popota e a Leopoldina" em dueto no LCD que emoldura um dos cantos da divisão, onde se desespera "horas a fio" com uma pulseira de triagem que, por ser de prioridade mínima, nos permite ficar de plateia como espectadores de vidas alheias. É apenas um local de trabalho onde o ofício é a Medicina, mas sem o "Dr. House" e os seus acólitos para nos divertir. De contrário os restantes actores e figurantes estão ali involuntariamente apenas para nos deprimir. A começar pelo parqueamento de doentes idosos acamados, ou em duas rodas, à espera do inadiável, embrulhados no seu próprio odor que se cola, sem o querermos, na nossa roupa. Um serviço onde trabalha gente decente sob os impropérios de quem lá quer saber das "metodologias da triagem de Manchester" e julga-se estar no talho do hiper onde tira um ticket que cauciona a sua prioridade pela ordem de chegada. Um hospital é assim como que um terminal humano de uma cidade. Um entreposto por onde se passa sem vontade. Um postal ilustrado de uma sociedade onde impera tantas e recorrentes vezes o abandono, a solidão, e a ingratidão. Um quadro da insensibilidade humana a começar pelos doentes que argúem a gravidade das maleitas uns dos outros para se expedirem o mais rápido possível a caminho da farmácia comparticipada.


Há altercações com a polícia e carpideiras de improviso. Crianças desorientadas e abafadas. Registos de ocorrências rodoviárias que seguem para agentes de seguros ou funerários. Labregagem que, por uma unha encravada, disputa a escala do médico de serviço, desanca nos auxiliares, e "amanda" perdigotos de indignação aos enfermeiros. Há ali de tudo numa triste comédia da condição humana nesta cidade ou em qualquer outra. Como poderia ser naquela cidade imaginária de "Palaguin" que a minha memória surrealista, e bizarra, repescou durante o ócio da espera. Perdido na névoa do surrealismo dei por mim ancorado no refrão repetido do poema de Carlos Eurico da Costa: "havia dramas e histórias de era uma vez ; havia hospitais repletos".


Nessa cidade que não existe à superfície o psicanalista surrealista debitava :
...
Na cidade de Palagüin
o dinheiro corrente eram olhos de crianças.
Em todas as ruas havia um bordel
e uma multidão de prostitutas
frequentava aos grupos casas de chá.

Havia dramas e histórias de era uma vez
havia hospitais repletos:
o pus escorria da porta para as valetas.

Havia janelas nunca abertas
e prisões descomunais sem portas.
Havia gente de bem a vagabundear
com a barba crescida.

Havia cães enormes e famélicos
a devorar mortos insepultos e voantes.

Havia três agências funerárias
em todos os locais de turismo da cidade.

Havia gente a beber sofregamente
a água dos esgotos e das poças.

Havia um corpo de bombeiros
que lançava nas chamas gasolina.

Havia ardinas a anunciar
a falência do jornal que vendiam;

Havia cinemas: o preço de entrada
era o sexo de um adolescente

Havia um trust bem organizado
Para a exploração do homossexualismo.

Havia leiteiros que ao alvorecer
distribuíam sangue quente ao domicílio.”
...
"Havia"


havia(…)muito mais no poema do surrealista lusitano mas, entretanto, o meu nome, tão português, repetiu-se em audível eco de segunda chamada na voz metálica que me ordenava que descesse ao mundo real, mais concretamente, ao gabinete médico número 7. Plácida e ordeiramente esperei pela minha vez que finalmente chegara. Depois de visto e revisto, à saída, dei o meu número de beneficiário da ADSE, entregaram-me uma declaração de presença, recibo da taxa moderadora e, o mais importante, o carimbo na receita para aviar o xarope para a tosse. Estava pronto para outras "variações"… aliás não era o António Variações que cantarolava "Se não passa com aguardente toma um comprimido que isso passa" ? Entretanto, Boas Festas...onde quiserem.

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