domingo, julho 11

VIDA DE CÃO


JAMIE WYETH, Study of Kleberg (gouache, watercolor and India ink. 1984)

 

Nestes tempos em que tanto se fala de Arte e Cultura nos Açores, uma terra de vacas felizes e agricultores descontentes, lembrei-me de partilhar esta pintura (uma de muitas) que Jamie Wyeth fez do seu Labrador, chamado Kleberg. Não é de estranhar a afinidade do artista com os Labrador Retrievers, uma raça de cães pescadores oriunda da região litoral do nordeste canadiano (Terra Nova e Labrador) que, segundo reza Ernesto do Canto no Arquivo dos Açores, deve o seu nome e “descoberta” (ponho a expressão entre aspas, pois já entrou no Indexdo politicamente incorreto) a um argonauta terceirense chamado João Fernandes Lavrador, que não deve ter sido bem sucedido naquelas paragens gélidas onde há mais vida no mar do que terra para lavrar. Os Esquimós que o digam. Em todo o caso, deixou o seu nome perpetuado na toponímia provincial canadiana e, por tabela, numa das mais amáveis raças caninas à face da terra, o que já não é pouca coisa.

 

Mas, como ia dizendo, Jamie, filho de Andrew e neto de Newell, pertence a uma família de notáveis pintores norte-americanos do Estado do Maine, região organicamente ligada à Acadia, antiga província do Canadá Francês no século XVIII, pelo que não é de admirar a sua afeição aos Labs, como são carinhosamente conhecidos na Nova Inglaterra, pois esta raça ajusta-se como uma luva à matriz histórica e geográfica do Maine, terra de lenhadores e marinheiros, reputados na construção naval e pesca da lagosta, com uma paisagem costeira pontuada de enseadas e centenas de pequenos faróis, que fizeram as delícias de muitos pintores, entre os quais o grande Edward Hopper.

 

Lamento que Jamie Wyeth tivesse escolhido Kleberg, um nome com ressonâncias escandinavas, para o chip veterinário do seu fiel Labrador. Se fosse aberta consulta pública para a reestruturação da sua identidade, à laia de orçamento participativo, votava sem hesitações no nome João Fernandes e já agora, atendendo ao carácter elástico e inclusivo do conceito de Açorianidade, propunha que os Labrador fossem considerados  primos afastados com assento no Conselho da Diáspora, reforçando assim a nossa vertente atlântica e destronando Bo, o falecido cão de água da família presidencial Obama, que até hoje ocupa uma posição proeminente (a par, vá lá, de Cristiano Ronaldo) no trending norte-americano como imagem de marca de Portugal e, também, dos Açores, pois fiquem os leigos sabendo que foi Vasco Bensaude quem deu um contributo decisivo para o registo e reconhecimento internacional da raça “cão de água português”, já que estes cães pescadores eram passageiros frequentes das célebres frotas do bacalhau, onde a família Bensaude detinha interesses no século passado (estranhamente pouco presentes na memória açoriana), e alguém lhe chamou a atenção para o comportamento dos animais a bordo, dizendo que além dos seus reconhecidos predicados marítimos, em matéria de interação social, só lhes faltava era jogarem às cartas com a tripulação .... muita dela açoriana, percorrendo os mesmos mares que João Fernandes Lavrador navegara há quinhentos anos atrás.

 

Nestes tempos em que tanto se fala de ressuscitar a atividade e os transportes marítimos, seria bom que a dotação orçamental para esse setor não fosse sugada pelo cone de aspiração do oceano profundo, sobrando alguns trocos, em jeito de orçamento participativo, para a preservação e estudo dessa memória, que está longe de se resumir à atividade baleeira e deveria alargar-se à pesca do bacalhau e do atum, por exemplo, isto para não falar das companhias de transporte marítimo (antecessoras da SATA) que asseguravam as ligações externas e internas no arquipélago, com particular destaque para a Empresa Insulana de Navegação e os Carregadores Açorianos.  

 

Vitorino Nemésio, que viveu os dias do “São Vapor” e neles escreveu o Corsário das Ilhas, certamente estaria de acordo com a ideia de que esta memória salgada é tão caracteristicamente açoriana como, para usar as suas próprias palavras, "o santo marisco das nossas calhetas"

 

Aprende-se alguma coisa com os cães, mesmo quando eles não são endémicos, mas apenas primos afastados.

 

Sem comentários: